segunda-feira, 29 de junho de 2015

Salas, sonhos, hippies, letras, superação, amores e viagens

Não gosto de perambular por lugares tristes, embora tenha total consciência de que a boa arte é, essencialmente, uma só tristeza. Você encara “MacBeth”, “Rei Lear” ou “Hamlet” gargalhando? Escuta o Quarteto nº 2, do Buhuslav Martinu, rindo à beça? Difícil imaginar alguém com ataques de risos num filme do Bergman. O sorrisão do pagodeiro, os coraçõezinhos felizardos de Romero Britto, as gargalhadas desses comediantes de stand-up – a felicidade, eterna inimiga da arte maior. Vou pensando nisso no meio do bar-lanchonete. Quase quatro da tarde. A loirinha da TV dá os detalhes do enterro de algum cantor sertanejo. Cristino Araújo, Cristiano Ronaldo, qualquer treco assim.

“Ele lançou os grandes sucessos ‘Efeitos’ e ‘Mente pra Mim’. É ídolo de Goiânia”, ensina a moça da TV. Tento lembrar algum refrão dessas músicas. Não lembro nenhum. Devo ser o único a ignorar a obra poética e musical do tal Cristino Araújo. Porque logo atrás da repórter surgem milhares de mulheres chorando, enfileiradas, esperando a vez de se aproximar do túmulo.

 “Que pena, né? Tão jovem...”

O sujeito quarentão, camisa verde e bermuda, chega puxando assunto.

“... morreu ele e a namorada, cê viu?”

“Não, não vi”, respondo, de olho na TV.

E começo a pensar em Shakespeare, Bergman e Buhuslav Martinu no momento em que a telinha exibe cenas do tal cantor sertanejo, todo sorridente, balançando as mãos e batendo palmas, em cima do palco, entoando outro desses arrochas universitários.

“Bem agora que ele tava começando a ganhar dinheiro, que coisa.”

“Você era fã? Quais suas três músicas favoritas dele?”, questiono.

O sujeito perde a resposta na goela.

“Rapaz, agora cê me pegou. Não conheço, não. Na verdade, minha filha é que gosta. Ele tem aquela música lá, sabe?”

“...”

“Aquela lá, que fala não sei o quê do amor?”

“...”

“Olha, pra falar a verdade, eu nem gosto dele, não.”

 “?!”

“Não é porque esse moleque morreu que eu vou ficar gostando dele.”

“?!”

“O que eu gosto, mesmo, é de sertanejo raiz”, confessa o sujeito.

Outro cara, agora de dentro do balcão, pergunta se quero alguma coisa. Cafezinho, cerveja, esfihas, suco, chips, pão de queijo a R$ 1. É tentador, mas ainda não. Única porta, abre durante a semana, das 7h às 23h, servindo um pouco de tudo. “90% da clientela é por causa do colégio”, comenta o proprietário do bar-lanchonete Pasárgada. Voltarei depois, eu digo, e saio do bar-lanchonete. Engraçado. No famoso poemeto, o velho Bandeira diz que, quando estiver triste, triste de não ter jeito, vai-se embora pra Pasárgada. Bandeira também não era chegado na tristeza. Coincidentemente, Pasárgada fica a meia dúzia de passos do Ceebja (Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos), na Rua Paranaguá, 430.

Quem me mandou pra cá foi o Emanuel Lopes. Num e-mail muito gentil, ele disse ser um “leitor assíduo” dessas mal traçadas linhas e garantiu que o local renderia boas histórias. Sei não. Como eu disse, não gosto de perambular por lugares tristes -quem cruza esse portão não escorrega num barranco de melancolia?

Caminho a passos céleres. Roleta. Coordenação. Secretaria. Bebedouros. Banheiros. Pátio deserto. Portas escancaradas de saletas vazias. TVs alaranjadas. Pego o corredor. Centenas de apostilas coloridas empilhadas num canto. Deve ser nessa porta escancarada. Entro. Um grande galpão - quadra de esportes? -, com salas improvisadas e delimitadas por divisórias de um metro de altura. Várias salas. Inglês. Sociologia. Física. Química. Filosofia. Matemática. O nome de cada matéria pregado no alto da parede. Um silêncio generalizado: é dia de prova. Tiozinhos sessentões e jovens de 18 a 30 anos se debruçam sobre as questões. Todo mundo realmente concentrado. Epa, quase todo mundo. Observe com calma: ali, ó, na última fileira de Inglês, empunhando um celular hipermoderno, a senhorinha sessentona confere as últimas atualizações do Facebook e, escondendo-se de professores e alunos – ó assassino que envenena o próprio pai, toma o trono e casa-se com a rainha! -, hesita por um instante em trocar mensagens pelo WhatsApp. Responder ou não responder, eis a questão? Dedinhos enrugados e serelepes fazem cócegas na tela – ela responde.

Unidos na exclusão

“Todo mundo que está aqui passou por um processo de exclusão. Ou teve que trabalhar no lugar de estudar, ou repetiu de ano, ou teve algum problema pessoal”, comenta uma professora que pede para não ser identificada. “Tem muita gente que aprende, já adulto, a ler e escrever aqui. Tem o caso de uma senhora, de 50 anos, que nasceu no Nordeste, passou fome e sede, numa vida miserável, e só agora, há alguns anos, veio se alfabetizar com a gente. Hoje, como ela consegue se explicar e falar com alguma desenvoltura, diz pra todo mundo que se acha uma madame”, relata outra professora.

O maior desafio da escola, ela conta, é fazer com que os alunos não desistam no meio do processo de aprendizado. “Muitos abandonam porque não conseguem conciliar com o trabalho. E tem o lado negativo: antes, os alunos poderiam vir no horário que quisessem. Hoje, os horários são definidos. Essa organização é prejudicial pro aluno”, observa.

Na saleta de inglês, uma garota se levanta. Caminha até a professora, entrega a prova e, discreta, sai do galpão de aulas coletivas. Crislaine Felipe, 26, estuda geografia, inglês e educação física, todos os dias, de manhã e de tarde. Pretende concluir os estudos de 5ª a 8ª série até o final do ano. Mora perto do colégio, junto com um irmão, e vem a pé: quinze minutos de caminhada. Paranaense nascida em Mariluz, a cerca de 138 quilômetros de Maringá, ela começou a trabalhar desde muito cedo com o corte de cana e, depois, virou auxiliar de cozinha num restaurante oriental. “Eu já tinha reprovado quatro vezes a 4ª série. Estava parada, sem fazer nada, e foi aí que comecei a trabalhar. Eu tinha desistido do estudo”, diz. A rotina, na casa dela, era de muito suor. Mais dois irmãos trabalhavam na roça e ajudavam nas despesas. O pai, caminhoneiro, abandonou a família e nunca mais deu as caras. “Minha mãe, que era espancada todo o dia pelo novo marido, foi uma heroína: conseguiu colocar comida dentro de casa pra todos nós.”

Hoje, Crislaine não abre mão da sala de aula. E sonha longe. “Quero seguir o exemplo do meu irmão e conseguir ser uma boa professora. Um dia ainda vou me formar na UEM”, diz. Com 40 anos, o irmão dela, que hoje dá aulas em Campo Mourão, fez das tripas coração para virar professor de História. Deslocava-se diariamente de Mariluz a Umuarama, onde estudava, e contava com a ajuda dos professores, que vez ou outra lhe ofereciam lanches e bolachas. “Ele pegava o ônibus às cinco da manhã e chegava em casa a uma hora da manhã do dia seguinte. Passava o dia inteiro estudando, muitas vezes passando fome. Se ele venceu, eu também posso vencer na vida”, comenta.

Desejo boa sorte à Crislaine. É sempre bom trombar com pessoas determinadas. Volto a vagar pelo Ceebja. Numa saleta de artes, um grupo de vinte e poucas pessoas tem seus dotes artísticos avaliados. Concentrados, alunos capricham nos traços e cores. Saio. Três senhoras passam por mim. Comentam, alegrinhas, o desempenho na prova.

“Fui um horror. E você?”

“Mais ou menos. Sorte que eles não podem reprovar a gente.”

Amor x sala de aula

Com roupas de academia, Amanda Amancio, 18, cruza a roleta rumo à rua. Parece um bocado cansada depois da prova – os pés na calçada sustentam a alminha exausta. Novata na área, ela encara o supletivo de dia e à noite, há duas semanas. Recém-casada, Amanda ficou um ano sem estudar. O amor, já dizia Diógenes, não é mesmo “a desocupação dos desocupados”? Sempre certeiro, o nosso Cínico. “O casamento modifica toda a sua vida. Vida a dois, dar mais atenção ao marido, esse tipo de coisa. Como estamos emocionalmente e economicamente mais estáveis, quero voltar a estudar e sonho cursar Psicologia, na UEM”, comenta. Enquanto a faculdade não chega, ela continua a se deslocar, diariamente, de Paiçandu, onde mora, a Maringá. “Em Paiçandu, o Ceebja é só de noite. Minhas noites, eu divido com meu marido”, diz.

Já estou há quase uma hora vagando pelo Ceebja. Bate forte a fome no peito. Lembro do pão de quejo a R$ 1. Chega de tristeza. Vou-me embora pra Pasárgada. Lá, peço o tal acepipe a preços módicos. O sujeito que falava sobre o sertanejo sumiu de cena. O Pasárgada estaria deserto, se não fosse a garota com os dreads cheios de cabelos. De vestidinho colorido, chinelinho rosa e blusinha preta, a curitibana Ellen Patricio guarda uma porção de viagens e mil e uma aventuras em seus 18 aninhos. Numa das poucas mesas do Pasárgada, ela toma um cafezinho e se regala com pão de queijo, enquanto segue a leitura do livro “Maestros, Obras-Primas e Loucura”, do Norma Lebrecht. Olhinhos intensos e voz maviosa, diz que parou de estudar aos 15 aninhos.

“Só não me pergunte o motivo. Porque eu nunca te direi”, responde, desafiadora. Certo, certo. Mudemos o rumo da conversa. Sobre qualquer outro tema, porém, ela topa falar numa boa. Da paixão por caiaques, ioga, cachoeiras e muita natureza. De sua admiração por Van Gogh, Modigliani, Picasso. De seu bom gosto musical, que vai de Caetano Veloso e Chico Buarque a Chopin e Bach, passando por Louis Armstrong e John Coltrane. “Acho que tô em fase de transição: nem gosto mais tanto de reggae”, reconhece. Dos mochilões por Sergipe, Mato Grosso do Sul, Bahia, Alagoas, Minas Gerais, conversando com nativos, buscando inspiração, vivendo a vida intensamente – quem sorri, ela ou você? Das oito telas já pintadas e a vontade danada de cursar Artes Visuais, talvez em Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, em qualquer canto do País.

Curioso, você, pelos quadros da nossa jovem pintora on the road? De nada adianta fuçar na internet, vasculhando as plataformas sociais da moçoila. “Pintar é algo muito íntimo: não mostro para qualquer um. Tô até planejando uma exposição, mais pra frente. Mas, se isso acontecer, terei que estudar como fazer as réplicas desses meus quadros. Ciumenta que sou, me recuso a exibir os originais ao público”, diz, já de olho no relógio e debandando de Pasárgada. “Tô atrasada pra aula de ioga, fica aqui perto. Tchau, bom falar contigo.”

Seis e pouco da tarde, mais alunos vão tomando a frente do Ceebja. Futuros pintores, psicólogos, professores – quantos sonhos cabem numa só pessoa? -, quase todos com passados lúgubres ou arrependidos. Na mesa do bar-lanchonete Pasárgada, ouço Bandeira sussurrar os famosos versinhos de seu poemeto: “E quando eu estiver mais triste / Mas triste de não ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / — Lá sou amigo do rei — / Terei a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada”. Colado ao Ceebja, o paraíso de Bandeira está localizado a menos de meia dúzia de passos. Para toda essa gente, à espera do início da aula, o paraíso fica um pouquinho mais distante, a duas quadras, precisamente, nalguma sala da UEM.

Publicado no Diário (29/6/15)

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