Não gosto de perambular por lugares tristes, embora tenha total
consciência de que a boa arte é, essencialmente, uma só tristeza. Você
encara “MacBeth”, “Rei Lear” ou “Hamlet” gargalhando? Escuta o Quarteto
nº 2, do Buhuslav Martinu, rindo à beça? Difícil imaginar alguém com
ataques de risos num filme do Bergman. O sorrisão do pagodeiro, os coraçõezinhos felizardos de Romero
Britto, as gargalhadas desses comediantes de stand-up – a felicidade,
eterna inimiga da arte maior. Vou pensando nisso no meio do
bar-lanchonete. Quase quatro da tarde. A loirinha da TV dá os detalhes
do enterro de algum cantor sertanejo. Cristino Araújo, Cristiano
Ronaldo, qualquer treco assim.
“Ele lançou os grandes sucessos ‘Efeitos’ e ‘Mente pra Mim’. É
ídolo de Goiânia”, ensina a moça da TV. Tento lembrar algum refrão
dessas músicas. Não lembro nenhum. Devo ser o único a ignorar a obra
poética e musical do tal Cristino Araújo. Porque logo atrás da repórter
surgem milhares de mulheres chorando, enfileiradas, esperando a vez de
se aproximar do túmulo.
“Que pena, né? Tão jovem...”
O sujeito quarentão, camisa verde e bermuda, chega puxando assunto.
“... morreu ele e a namorada, cê viu?”
“Não, não vi”, respondo, de olho na TV.
E começo a pensar em Shakespeare, Bergman e Buhuslav Martinu no
momento em que a telinha exibe cenas do tal cantor sertanejo, todo
sorridente, balançando as mãos e batendo palmas, em cima do palco,
entoando outro desses arrochas universitários.
“Bem agora que ele tava começando a ganhar dinheiro, que coisa.”
“Você era fã? Quais suas três músicas favoritas dele?”, questiono.
O sujeito perde a resposta na goela.
“Rapaz, agora cê me pegou. Não conheço, não. Na verdade, minha filha é que gosta. Ele tem aquela música lá, sabe?”
“...”
“Aquela lá, que fala não sei o quê do amor?”
“...”
“Olha, pra falar a verdade, eu nem gosto dele, não.”
“?!”
“Não é porque esse moleque morreu que eu vou ficar gostando dele.”
“?!”
“O que eu gosto, mesmo, é de sertanejo raiz”, confessa o sujeito.
Outro cara, agora de dentro do balcão, pergunta se quero alguma
coisa. Cafezinho, cerveja, esfihas, suco, chips, pão de queijo a R$ 1. É
tentador, mas ainda não. Única porta, abre durante a semana, das 7h às
23h, servindo um pouco de tudo. “90% da clientela é por causa do
colégio”, comenta o proprietário do bar-lanchonete Pasárgada. Voltarei
depois, eu digo, e saio do bar-lanchonete. Engraçado. No famoso poemeto,
o velho Bandeira diz que, quando estiver triste, triste de não ter
jeito, vai-se embora pra Pasárgada. Bandeira também não era chegado na
tristeza. Coincidentemente, Pasárgada fica a meia dúzia de passos do
Ceebja (Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos), na
Rua Paranaguá, 430.
Quem me mandou pra cá foi o Emanuel Lopes. Num e-mail muito
gentil, ele disse ser um “leitor assíduo” dessas mal traçadas linhas e
garantiu que o local renderia boas histórias. Sei não. Como eu disse,
não gosto de perambular por lugares tristes -quem cruza esse portão não
escorrega num barranco de melancolia?
Caminho a passos céleres. Roleta. Coordenação. Secretaria.
Bebedouros. Banheiros. Pátio deserto. Portas escancaradas de saletas
vazias. TVs alaranjadas. Pego o corredor. Centenas de apostilas
coloridas empilhadas num canto. Deve ser nessa porta escancarada. Entro.
Um grande galpão - quadra de esportes? -, com salas improvisadas e
delimitadas por divisórias de um metro de altura. Várias salas. Inglês.
Sociologia. Física. Química. Filosofia. Matemática. O nome de cada matéria pregado no alto da parede.
Um silêncio generalizado: é dia de prova. Tiozinhos sessentões e jovens
de 18 a 30 anos se debruçam sobre as questões. Todo mundo realmente
concentrado. Epa, quase todo mundo. Observe com calma: ali, ó, na última
fileira de Inglês, empunhando um celular hipermoderno, a senhorinha
sessentona confere as últimas atualizações do Facebook e, escondendo-se
de professores e alunos – ó assassino que envenena o próprio pai, toma o
trono e casa-se com a rainha! -, hesita por um instante em trocar
mensagens pelo WhatsApp. Responder ou não responder, eis a questão?
Dedinhos enrugados e serelepes fazem cócegas na tela – ela responde.
Unidos na exclusão
“Todo mundo que está aqui passou por um processo de exclusão. Ou teve
que trabalhar no lugar de estudar, ou repetiu de ano, ou teve algum
problema pessoal”, comenta uma professora que pede para não ser
identificada. “Tem muita gente que aprende, já adulto, a ler e escrever
aqui. Tem o caso de uma senhora, de 50 anos, que nasceu no Nordeste,
passou fome e sede, numa vida miserável, e só agora, há alguns anos,
veio se alfabetizar com a gente. Hoje, como ela consegue se explicar e
falar com alguma desenvoltura, diz pra todo mundo que se acha uma
madame”, relata outra professora.
O maior desafio da escola, ela conta, é fazer com que os alunos não
desistam no meio do processo de aprendizado. “Muitos abandonam porque
não conseguem conciliar com o trabalho. E tem o lado negativo: antes, os
alunos poderiam vir no horário que quisessem. Hoje, os horários são
definidos. Essa organização é prejudicial pro aluno”, observa.
Na saleta de inglês, uma garota se levanta. Caminha até a professora,
entrega a prova e, discreta, sai do galpão de aulas coletivas.
Crislaine Felipe, 26, estuda geografia, inglês e educação física, todos
os dias, de manhã e de tarde. Pretende concluir os estudos de 5ª a 8ª
série até o final do ano. Mora perto do colégio, junto com um irmão, e
vem a pé: quinze minutos de caminhada. Paranaense nascida em Mariluz, a
cerca de 138 quilômetros de Maringá, ela começou a trabalhar desde muito
cedo com o corte de cana e, depois, virou auxiliar de cozinha num
restaurante oriental. “Eu já tinha reprovado quatro vezes a 4ª série.
Estava parada, sem fazer nada, e foi aí que comecei a trabalhar. Eu
tinha desistido do estudo”, diz. A rotina, na casa dela, era de muito
suor. Mais dois irmãos trabalhavam na roça e ajudavam nas despesas. O
pai, caminhoneiro, abandonou a família e nunca mais deu as caras. “Minha
mãe, que era espancada todo o dia pelo novo marido, foi uma heroína:
conseguiu colocar comida dentro de casa pra todos nós.”
Hoje, Crislaine não abre mão da sala de aula. E sonha longe. “Quero
seguir o exemplo do meu irmão e conseguir ser uma boa professora. Um dia
ainda vou me formar na UEM”, diz. Com 40 anos, o irmão dela, que hoje
dá aulas em Campo Mourão, fez das tripas coração para virar professor de
História. Deslocava-se diariamente de Mariluz a Umuarama, onde
estudava, e contava com a ajuda dos professores, que vez ou outra lhe
ofereciam lanches e bolachas. “Ele pegava o ônibus às cinco da manhã e
chegava em casa a uma hora da manhã do dia seguinte. Passava o dia
inteiro estudando, muitas vezes passando fome. Se ele venceu, eu também
posso vencer na vida”, comenta.
Desejo boa sorte à Crislaine. É sempre bom trombar com pessoas
determinadas. Volto a vagar pelo Ceebja. Numa saleta de artes, um grupo
de vinte e poucas pessoas tem seus dotes artísticos avaliados.
Concentrados, alunos capricham nos traços e cores. Saio. Três senhoras
passam por mim. Comentam, alegrinhas, o desempenho na prova.
“Fui um horror. E você?”
“Mais ou menos. Sorte que eles não podem reprovar a gente.”
Amor x sala de aula
Com roupas de academia, Amanda Amancio, 18, cruza a roleta rumo à
rua. Parece um bocado cansada depois da prova – os pés na calçada
sustentam a alminha exausta. Novata na área, ela encara o supletivo de
dia e à noite, há duas semanas. Recém-casada, Amanda ficou um ano sem
estudar. O amor, já dizia Diógenes, não é mesmo “a desocupação dos
desocupados”? Sempre certeiro, o nosso Cínico. “O casamento modifica
toda a sua vida. Vida a dois, dar mais atenção ao marido, esse tipo de
coisa. Como estamos emocionalmente e economicamente mais estáveis, quero
voltar a estudar e sonho cursar Psicologia, na UEM”, comenta. Enquanto a
faculdade não chega, ela continua a se deslocar, diariamente, de
Paiçandu, onde mora, a Maringá. “Em Paiçandu, o Ceebja é só de noite.
Minhas noites, eu divido com meu marido”, diz.
Já estou há quase uma hora vagando pelo Ceebja. Bate forte a fome no
peito. Lembro do pão de quejo a R$ 1. Chega de tristeza. Vou-me embora
pra Pasárgada. Lá, peço o tal acepipe a preços módicos. O sujeito que
falava sobre o sertanejo sumiu de cena. O Pasárgada estaria deserto, se
não fosse a garota com os dreads cheios de cabelos. De vestidinho
colorido, chinelinho rosa e blusinha preta, a curitibana Ellen Patricio
guarda uma porção de viagens e mil e uma aventuras em seus 18 aninhos.
Numa das poucas mesas do Pasárgada, ela toma um cafezinho e se regala
com pão de queijo, enquanto segue a leitura do livro “Maestros,
Obras-Primas e Loucura”, do Norma Lebrecht. Olhinhos intensos e voz
maviosa, diz que parou de estudar aos 15 aninhos.
“Só não me pergunte o motivo. Porque eu nunca te direi”, responde,
desafiadora. Certo, certo. Mudemos o rumo da conversa. Sobre qualquer
outro tema, porém, ela topa falar numa boa. Da paixão por caiaques,
ioga, cachoeiras e muita natureza. De sua admiração por Van Gogh,
Modigliani, Picasso. De seu bom gosto musical, que vai de Caetano Veloso
e Chico Buarque a Chopin e Bach, passando por Louis Armstrong e John
Coltrane. “Acho que tô em fase de transição: nem gosto mais tanto de
reggae”, reconhece. Dos mochilões por Sergipe, Mato Grosso do Sul,
Bahia, Alagoas, Minas Gerais, conversando com nativos, buscando
inspiração, vivendo a vida intensamente – quem sorri, ela ou você? Das
oito telas já pintadas e a vontade danada de cursar Artes Visuais,
talvez em Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, em qualquer canto do
País.
Curioso, você, pelos quadros da nossa jovem pintora on the road? De
nada adianta fuçar na internet, vasculhando as plataformas sociais da
moçoila. “Pintar é algo muito íntimo: não mostro para qualquer um. Tô
até planejando uma exposição, mais pra frente. Mas, se isso acontecer,
terei que estudar como fazer as réplicas desses meus quadros. Ciumenta
que sou, me recuso a exibir os originais ao público”, diz, já de olho no
relógio e debandando de Pasárgada. “Tô atrasada pra aula de ioga, fica
aqui perto. Tchau, bom falar contigo.”
Seis e pouco da tarde, mais alunos vão tomando a frente do Ceebja.
Futuros pintores, psicólogos, professores – quantos sonhos cabem numa só
pessoa? -, quase todos com passados lúgubres ou arrependidos. Na mesa
do bar-lanchonete Pasárgada, ouço Bandeira sussurrar os famosos
versinhos de seu poemeto: “E quando eu estiver mais triste / Mas triste
de não ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / — Lá
sou amigo do rei — / Terei a mulher que eu quero / Na cama que
escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada”. Colado ao Ceebja, o paraíso
de Bandeira está localizado a menos de meia dúzia de passos. Para toda
essa gente, à espera do início da aula, o paraíso fica um pouquinho mais
distante, a duas quadras, precisamente, nalguma sala da UEM.
Publicado no Diário (29/6/15)
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