segunda-feira, 8 de junho de 2015

Sacolejo, musas, traição, ETs, bíblia e perseguição

Terminal rodoviário, véspera de feriado de Corpus Christi: às cinco e pouco da tarde, num silêncio coletivo, você acompanha jovens estudantes voltando para casa, índios kaingangs com balaios coloridos, doze velhos à espera dos próximos ônibus e a senhorinha serelepe desfilando com uma bolsa amarela, onde se lê - em letras garrafais! - o imponente nome de Victor Hugo: homenagem ao grande autor de "Os Miseráveis"? Vá saber.

Relinchando em voz alta, um ônibus para na minha frente. Rostos exaustos se levantam, entediados e enfileirados diante do 6417. Entro ou não entro? Tive aulas de latim, há alguns anos, na UEM. Confesso, não me dei muito bem com a língua morta – prefiro, sim, as línguas bem vivinhas e danadas. Talvez melhor esperar o próximo ônibus. Mesmo mau aluno, em doze meses decorei uma e outra frase do Horácio, como "ira furor brevis est" ("o ódio é um surto de insanidade") e fiquei por dentro de algumas curiosidades etimológicas. Sei, por exemplo, que a origem do nosso substantivo "ônibus" veio do latim, "omnibus" ("para todos"), porque "omnis" significa "tudo", "todos". Um nome, portanto, ideal para o meio de transporte coletivo. "Moço, você vai pegar esse pro Laranjeiras?", questiona-me a loirinha L. S. D., de 18 aninhos. Eu entro, eu entro, eu entro!

Um alô para o motorista, vamos passando a roleta, sentamos lado ao lado. De calça jeans amarelinha, blusa de oncinha e boquinha pintada de vermelho - como é bom moça pintada de vermelho! -, L. S. D. tem a ansiedade cheia de olhos. Dedinhos tamborilando pela bolsa, seus pés marcam, rapidinho, alguma música imaginária – certamente outro sertanejão. O que se passa pela cabeça de uma jovem de 18 aninhos? "Tudo o que eu mais quero na vida é casar com homem decente", desabafa a nossa loirinha. Sobem quinze ou dezessete passageiros. O ônibus fecha as portas e começa a jornada. Boa de prosa, L. S. D. vai abrindo o coração: desde cedo, perdida no amor. Não apenas num só grande e avassalador, mas em três: Francisco, Ricardo, Guilherme. Atraída, até quando, por homens trissílabos? Um deles, conheceu quando criança. Juntos e felizes para sempre por sete meses – não é o bendito número sagrado? Outra grande paixão acabou quando o sujeito conheceu uma falsa loira – antes disso, a traição no banheiro do Dionísio. "Até que era bonita, viu?" O resultado? Em três meses, já casados. "Mesmo assim, todo mundo sabe que ele gosta de mim."

Por fim, o terceiro: estudante de mesma idade, magrelo e miúdo. "Olha a foto dele aqui, ó", exibe a moçoila, estendendo o celular hipermoderno. Se estalasse os dedinhos vermelhos, não moveria o Monte Sinai e o Monte Sião? A escuridão não encobriria o Sol por três dias ao seu único pedido? A nuvem de gafanhotos não dominaria a cidade, se ela ordenasse, cochichando no ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam homens e animais!, rãs cobririam a terra!, as águas do Nilo tingir-se-iam de puro sangue! Se quisesse, os três correndo rapidinho aos seus pés. "Qual deles escolho? Ai, sou tão azarada."

Juntos, vamos sacolejando pelas avenidas Colombo e Paraná, cruzamos o Colégio Ipiranga, penetramos na Mandacaru. Penso no velho Diógenes, o Cínico, refletindo sobre as coisas do coração: "o amor é uma desocupação dos desocupados". Mas isso eu só penso, não digo à nossa loirinha cheia de enredos rocambolescos. Tudo o que ela quer é rapaz longe de balada e boteco. Alguém que goste de coisas simples: cinema, comidinha caseira, passeio no parque aos domingos. Muito lençol, travesseiro e colchão. "Tudo pra ter a família que não tive", avalia.

Desde muito cedo, L. S. D. sabe das aventuras paternas. Casado com duas mulheres, o paizão administra, ao mesmo tempo, duas famílias na mesma Maringá. Nas casas, estrategicamente construídas em lados opostos da cidade, tudo bem com o relacionamento múltiplo. "Minha mãe diz que assim é até melhor. Num final de semana, ele passa com a gente. No outro, com a outra mulher e os outros filhos. Sabia que eu nunca tive curiosidade de ver a outra esposa? Só os filhos. Uma vez vi todos eles, juntinhos. Nada demais", comenta, e já vai se despedindo. "Foi bom desabafar com você. Valeu, viu? Vou descer por aqui. Até!"

Cinco paras as seis – o pôr-do-sol lambendo o ônibus. Abandonado no 6417, coração tremelicante saracoteando em cada quebra-mola, esbarro em Graziela Morais. Com 22 anos, ela não marca bobeira. Quando encerra a labuta numa rede de fast-food no Centro, só sai às ruas maringaenses sob proteção de dois poderosos fones de ouvido. Graziela sabe que uma inofensiva caminhadinha até o terminal é fatal à boa audição: soterrado, você, pela enxurrada de músicas sertanejas, do caubói com som alto no carro à loja de roupas em promoção. "Assim, posso ouvir meu Guns N' Roses em paz", justifica.

Discordando do otimismo de Voltaire, de que estamos vivendo sempre o melhor dos tempos, ela comenta que sua adolescência foi, sim, pelo menos musicalmente, muito melhor do que esses dias sertânicos. "Minha época tinha boas bandas covers. Show de rock com qualidade. Hoje só dá esse lixo aí", reclama, com razão, esperta a qualquer sinal sonoro da turma do Camaro Amarelo. "Preciso descer aqui. Moro no Laranjeiras. Tchau, até a próxima."

Revólver e perseguição
Vou me embrenhando numa Maringá sinistra. De ruas apertadas e terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos rostos desconfiados no açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do Trono, com gente de terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão sagrado escancara os berros da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. Já é noite. Quilômetros e quilômetros mal iluminados apressam o passo da moça, aumentam os batimentos cardíacos do velho, matam de susto o tiozinho na bicicleta. Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida? Daqui o Senhor mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade que viajo nem de longe lembra a Maringá dos cartões postais. "Esse horário é tranquilo. Dá pra fazer nuns quarenta minutos. Problema é a última viagem, às oito. Tem que dar uma acelerada, o trânsito cada vez mais complicado", diz o motorista. Estamos sozinhos no ônibus. Onde se escondeu o Sol? Guiando das 11h às 13h30 e das 16h às 21h, o sujeito diz que é uma aventura constante enfrentar os talentosíssimos motoristas maringaenses. "A culpa é dos instrutores ruins que temos na cidade", observa. O motorista debandou de São Paulo, onde dirigiu ônibus por quinze anos, e voltou há dois meses para sua cidade natal. "Aqui, ninguém respeita a sinalização. Pra piorar, a cidade é descuidada.Por que não colocam um semáforo na Mandacaru, na frente do HU?"

Num dos tantos becos escuros, o ônibus para e outro motorista sobe. Somos três, puxo conversa. Muita reclamação sobre falta de segurança e várias aventuras nas linhas do Cidade Alta, o bairro mais temido entre os motoristas de ônibus. "Lá é um horror. Você tá sempre correndo perigo. Um dia, rapaz, fui seguido por um motoqueiro, lá numa rua do Cidade Alta, que apontava o revólver e mandava eu encostar", comenta o maringaense, motorista há 15 anos. Às sete da noite, com oito passageiros, ele teve que pisar fundo e improvisar uma rota alternativa. "Saí por umas ruas diferentes e consegui me livrar dele, mas foi um sufoco. A polícia chegou depois, deu escolta. No mesmo dia pedi pra me tirarem daquela linha."

Aleluia!
Aos poucos, outros passageiros vão tomando assento. No breu, poucos leitores. Uma quarentona acompanha as letras miúdas de algum contrato de emprego. À sua frente, um negro de terno preto alimenta a alma de letras miúdas. "Na bíblia, você encontra todas as lições pra vida", garante, apontando para o nome de Jeremias grafado na página. Da janela lateral, agora sim, me dou conta de onde estamos, vejo que voltamos à Mandacaru: um gorducho de chinelos toma goladas desesperadas de sua cerveja Litrão – a grande sede de viver.

Na frente do Mercadão, trânsito infernal. Culpa da feira de quarta. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na calçada? Os mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha rosa, blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho de cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e versinhos líricos.

Nocauteado pela musa anônima, desço do ônibus num terminal barulhento, às sete e pouco. Duas horas sacolejando histórias no 6417.

"Ela conheceu um árabe e foi lá pra aquele país..."

"Por favor, dois passes pra Maringá."

"Estudei bruxaria, misticismo e gnose. Tô te dizendo: aqui tem muito ET. Eles existem."

"... caramba, como é mesmo o nome daquele país?"

"E o fiador?"

"Turquia?"

"Tava tudo errado: o nome de um com CPF de outro!"

"Equador?"

"Essa cidade tá um horror."

"Tem o caso famoso, dos dois irmãos, daqui de Maringá, que até fizeram sexo com ET, dentro da nave, lá no Jardim Alvorada. Acho que nos anos oitenta. Tá na internet."

"Sabe se esse vai pro Laranjeiras?!"

Fim da linha de todo boêmio, única dúvida ribombando forte no peito: onde beber a véspera do santíssimo feriado?

Publicado no Diário (7/6/2015)

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