Terminal rodoviário, véspera de feriado de Corpus Christi: às cinco e
pouco da tarde, num silêncio coletivo, você acompanha jovens estudantes
voltando para casa, índios kaingangs com balaios coloridos, doze velhos
à espera dos próximos ônibus e a senhorinha serelepe desfilando com uma
bolsa amarela, onde se lê - em letras garrafais! - o imponente nome de
Victor Hugo: homenagem ao grande autor de "Os Miseráveis"? Vá saber.
Relinchando
em voz alta, um ônibus para na minha frente. Rostos exaustos se
levantam, entediados e enfileirados diante do 6417. Entro ou não entro?
Tive aulas de latim, há alguns anos, na UEM. Confesso, não me dei muito
bem com a língua morta – prefiro, sim, as línguas bem vivinhas e
danadas. Talvez melhor esperar o próximo ônibus. Mesmo mau aluno, em
doze meses decorei uma e outra frase do Horácio, como "ira furor brevis
est" ("o ódio é um surto de insanidade") e fiquei por dentro de algumas
curiosidades etimológicas. Sei, por exemplo, que a origem do nosso
substantivo "ônibus" veio do latim, "omnibus" ("para todos"), porque
"omnis" significa "tudo", "todos". Um nome, portanto, ideal para o meio
de transporte coletivo. "Moço, você vai pegar esse pro Laranjeiras?",
questiona-me a loirinha L. S. D., de 18 aninhos. Eu entro, eu entro, eu
entro!
Um alô para o motorista, vamos passando a roleta, sentamos
lado ao lado. De calça jeans amarelinha, blusa de oncinha e boquinha
pintada de vermelho - como é bom moça pintada de vermelho! -, L. S. D.
tem a ansiedade cheia de olhos. Dedinhos tamborilando pela bolsa, seus
pés marcam, rapidinho, alguma música imaginária – certamente outro
sertanejão. O que se passa pela cabeça de uma jovem de 18 aninhos? "Tudo
o que eu mais quero na vida é casar com homem decente", desabafa a
nossa loirinha. Sobem quinze ou dezessete passageiros. O ônibus fecha as
portas e começa a jornada. Boa de prosa, L. S. D. vai abrindo o
coração: desde cedo, perdida no amor. Não apenas num só grande e
avassalador, mas em três: Francisco, Ricardo, Guilherme. Atraída, até
quando, por homens trissílabos? Um deles, conheceu quando criança.
Juntos e felizes para sempre por sete meses – não é o bendito número
sagrado? Outra grande paixão acabou quando o sujeito conheceu uma falsa
loira – antes disso, a traição no banheiro do Dionísio. "Até que era
bonita, viu?" O resultado? Em três meses, já casados. "Mesmo assim, todo
mundo sabe que ele gosta de mim."
Por fim, o terceiro: estudante de
mesma idade, magrelo e miúdo. "Olha a foto dele aqui, ó", exibe a
moçoila, estendendo o celular hipermoderno. Se estalasse os dedinhos
vermelhos, não moveria o Monte Sinai e o Monte Sião? A escuridão não
encobriria o Sol por três dias ao seu único pedido? A nuvem de
gafanhotos não dominaria a cidade, se ela ordenasse, cochichando no
ouvidinho? Claro que sim: moscas atacariam homens e animais!, rãs
cobririam a terra!, as águas do Nilo tingir-se-iam de puro sangue! Se
quisesse, os três correndo rapidinho aos seus pés. "Qual deles escolho?
Ai, sou tão azarada."
Juntos, vamos sacolejando pelas avenidas
Colombo e Paraná, cruzamos o Colégio Ipiranga, penetramos na Mandacaru.
Penso no velho Diógenes, o Cínico, refletindo sobre as coisas do
coração: "o amor é uma desocupação dos desocupados". Mas isso eu só
penso, não digo à nossa loirinha cheia de enredos rocambolescos. Tudo o
que ela quer é rapaz longe de balada e boteco. Alguém que goste de
coisas simples: cinema, comidinha caseira, passeio no parque aos
domingos. Muito lençol, travesseiro e colchão. "Tudo pra ter a família
que não tive", avalia.
Desde muito cedo, L. S. D. sabe das
aventuras paternas. Casado com duas mulheres, o paizão administra, ao
mesmo tempo, duas famílias na mesma Maringá. Nas casas, estrategicamente
construídas em lados opostos da cidade, tudo bem com o relacionamento
múltiplo. "Minha mãe diz que assim é até melhor. Num final de semana,
ele passa com a gente. No outro, com a outra mulher e os outros filhos.
Sabia que eu nunca tive curiosidade de ver a outra esposa? Só os filhos.
Uma vez vi todos eles, juntinhos. Nada demais", comenta, e já vai se
despedindo. "Foi bom desabafar com você. Valeu, viu? Vou descer por
aqui. Até!"
Cinco paras as seis – o pôr-do-sol lambendo o ônibus.
Abandonado no 6417, coração tremelicante saracoteando em cada
quebra-mola, esbarro em Graziela Morais. Com 22 anos, ela não marca
bobeira. Quando encerra a labuta numa rede de fast-food no Centro, só
sai às ruas maringaenses sob proteção de dois poderosos fones de ouvido.
Graziela sabe que uma inofensiva caminhadinha até o terminal é fatal à
boa audição: soterrado, você, pela enxurrada de músicas sertanejas, do
caubói com som alto no carro à loja de roupas em promoção. "Assim, posso
ouvir meu Guns N' Roses em paz", justifica.
Discordando do
otimismo de Voltaire, de que estamos vivendo sempre o melhor dos tempos,
ela comenta que sua adolescência foi, sim, pelo menos musicalmente,
muito melhor do que esses dias sertânicos. "Minha época tinha boas
bandas covers. Show de rock com qualidade. Hoje só dá esse lixo aí",
reclama, com razão, esperta a qualquer sinal sonoro da turma do Camaro
Amarelo. "Preciso descer aqui. Moro no Laranjeiras. Tchau, até a
próxima."
Revólver e perseguição
Vou me embrenhando numa Maringá sinistra.
De ruas apertadas e terrenos abandonados. Da Capela Papa João 23. Dos
rostos desconfiados no açougue-boteco. Da Igreja Pentecostal Diante do
Trono, com gente de terno e sorrisão nos grandes lábios – o portão
sagrado escancara os berros da louvação. Pó, poeira, cheiro verde. Já é
noite. Quilômetros e quilômetros mal iluminados apressam o passo da
moça, aumentam os batimentos cardíacos do velho, matam de susto o
tiozinho na bicicleta. Desses becos Moisés avistou a Terra Prometida?
Daqui o Senhor mostrou-lhe toda a terra, de Gileade até Dã? Essa cidade
que viajo nem de longe lembra a Maringá dos cartões postais. "Esse
horário é tranquilo. Dá pra fazer nuns quarenta minutos. Problema é a
última viagem, às oito. Tem que dar uma acelerada, o trânsito cada vez
mais complicado", diz o motorista. Estamos sozinhos no ônibus. Onde se
escondeu o Sol? Guiando das 11h às 13h30 e das 16h às 21h, o sujeito diz
que é uma aventura constante enfrentar os talentosíssimos motoristas
maringaenses. "A culpa é dos instrutores ruins que temos na cidade",
observa. O motorista debandou de São Paulo, onde dirigiu ônibus por
quinze anos, e voltou há dois meses para sua cidade natal. "Aqui,
ninguém respeita a sinalização. Pra piorar, a cidade é descuidada.Por
que não colocam um semáforo na Mandacaru, na frente do HU?"
Num
dos tantos becos escuros, o ônibus para e outro motorista sobe. Somos
três, puxo conversa. Muita reclamação sobre falta de segurança e várias
aventuras nas linhas do Cidade Alta, o bairro mais temido entre os
motoristas de ônibus. "Lá é um horror. Você tá sempre correndo perigo.
Um dia, rapaz, fui seguido por um motoqueiro, lá numa rua do Cidade
Alta, que apontava o revólver e mandava eu encostar", comenta o
maringaense, motorista há 15 anos. Às sete da noite, com oito
passageiros, ele teve que pisar fundo e improvisar uma rota alternativa.
"Saí por umas ruas diferentes e consegui me livrar dele, mas foi um
sufoco. A polícia chegou depois, deu escolta. No mesmo dia pedi pra me
tirarem daquela linha."
Aleluia!
Aos poucos, outros
passageiros vão tomando assento. No breu, poucos leitores. Uma
quarentona acompanha as letras miúdas de algum contrato de emprego. À
sua frente, um negro de terno preto alimenta a alma de letras miúdas.
"Na bíblia, você encontra todas as lições pra vida", garante, apontando
para o nome de Jeremias grafado na página. Da janela lateral, agora sim,
me dou conta de onde estamos, vejo que voltamos à Mandacaru: um
gorducho de chinelos toma goladas desesperadas de sua cerveja Litrão – a
grande sede de viver.
Na frente do Mercadão, trânsito infernal.
Culpa da feira de quarta. Não é a nossa Julie Manet, caminhando na
calçada? Os mesmos olhos tristes, aquela boquinha vermelha?! De sainha
rosa, blusinha preta, meia rosa erguidinha e cabelinho preso num rabinho
de cavalo - ó hexâmetros órficos da Grécia heroica!, ó margens do rio
Hebro!, ó azeite de oliveira puríssimo! De pé, eu me ergo: levanto
ligeiro, embasbacado pela mirra mais preciosa, arremessando flores e
versinhos líricos.
Nocauteado pela musa anônima, desço do ônibus
num terminal barulhento, às sete e pouco. Duas horas sacolejando
histórias no 6417.
"Ela conheceu um árabe e foi lá pra aquele país..."
"Por favor, dois passes pra Maringá."
"Estudei bruxaria, misticismo e gnose. Tô te dizendo: aqui tem muito ET. Eles existem."
"... caramba, como é mesmo o nome daquele país?"
"E o fiador?"
"Turquia?"
"Tava tudo errado: o nome de um com CPF de outro!"
"Equador?"
"Essa cidade tá um horror."
"Tem
o caso famoso, dos dois irmãos, daqui de Maringá, que até fizeram sexo
com ET, dentro da nave, lá no Jardim Alvorada. Acho que nos anos
oitenta. Tá na internet."
"Sabe se esse vai pro Laranjeiras?!"
Fim da linha de todo boêmio, única dúvida ribombando forte no peito: onde beber a véspera do santíssimo feriado?
Publicado no Diário (7/6/2015)
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