Voltei de meu autoexílio parisiense no domingo passado. Desembarquei
no aeroporto de Maringá, na calada da noite, e fui surpreendido por
centenas de leitores, todos muito amáveis, empunhando faixas e buquês de
flores, saudando meu regresso com selfies, beijos e abraços. Estavam lá
Madalena Stocco, Graciele Gallé, Cristiano Martinez – rouco de tanto
berrar "Gaioto, o nosso Hunter Thompson paranaense!" -, um tal de
Ricardo e até mesmo o recluso milionário maringaense Juarez Arantes, que
me ofereceu carona em seu confortável Del Rey preto. Os outros tantos
nomes, infelizmente, não deu para guardar. Se retorno às tortas linhas,
hoje no braços do povo, é só por causa de vocês.
Decidido a levar
adiante o plano megalomaníaco de mitificação literária dos cantos
maringaenses, resolvi inverter um pouco as coisas e dar um pulo em
Sarandi, perambulando pela Avenida Maringá. Curioso: há uma homenagem a
Maringá em Sarandi, mas não há Rua Sarandi nem Avenida Sarandi por aqui.
Com suas vinte e poucas quadras, é a principal avenida de Sarandi.
Impávida e colossal. Tão importante que, além dos comércios, casas e 367
bares, numa extremidade fica a Câmara dos Vereadores - à noite
elegantemente iluminada por luzes azuis, verdes e amarelas - e, na
outra, o Fórum Estadual. Mal chego na famigerada avenida, às cinco da
tarde, corro logo para o primeiro bar - você me conhece bem, dentro
deste peito afoito despertam mil e uma revoadas de pássaros bêbados.
Entro no botecão: sertanejão de raiz berrando alto nas caixas de som,
outra história de algum manso. Doze clientes, espalhados pelas mesas da
calçada. Sento num canto, sozinho. Do meu lado, um sujeito gorducho e
barbudo, metido numa camisa cavada e numa bermuda macilenta,
refestela-se com cerveja geladinha – nos pés agigantados, o chinelinho
não dá conta de tantos dedos. Ao seu lado, uma senhora magrela de
quarenta e poucos anos, vestidão azul, sorriso banguelão e decotão para
afogar as mágoas de um batalhão, berra suas desilusões amorosas.
"Aquele desgraçado arruinou minha vida."
"Bebe, amor, bebe."
"Com o João foi assim. Quase me picou inteirinha com facão desse tamanho..."
"Santo Deus."
"...
só porque dei bafão no bailão. Daí foi em cana. Mais que merecido.
Agora, livrinho, saiu para a vida e deu pra ficar me seguindo. Onde eu
vou ele aparece, cheio de ódio."
"Bafão de cachaça, droga, sabe lá Deus o que mais."
"Sorte minha você aqui comigo."
Uma
pampa branca, toda despedaçada, dá uma bruta freada na porta do boteco -
não cheira à morte o fedor dos pneus? A mulher se assusta, olhão
arregalado. O gorducho, ligeiro, mete a mão na cintura - caçando o velho
canivete de guerra? Já de pé, no canto do bar, vou saindo de cena.
Outro mau motorista, por sorte não o ex-presidiário maluco.
Na
Avenida Maringá, nada de marcar bobeira. Ando vinte e poucos passos,
entro noutro boteco – tão parecido, da nobre clientela à bendita trilha
sonora, não seria o mesmo? Vou ancorando numa mesa da calçada. No
cemitério de vasilhames, um cara diferente. Bebendo sozinho e rabiscando
poemetos em guardanapos. Dalton (nome fictício) é bacharel em Letras,
tem 27 anos, mora em Maringá e namora uma estudante de Sarandi. "Ela já
tá chegando. Como não tenho chave da casa, dei um tempo aqui. Vai uma
cerveja?", convida Dalton.
Já no primeiro gole, o bacharel em
Letras revela-se um exímio contador de histórias. Baixinho e gorducho,
narra tudo com mínimos detalhes. Conduz as cenas e os microcosmos
controlando o suspense e a tensão, apropriando-se de verbos certeiros,
sem tropeçar na adjetivação afetada. Escrever bem não é pensar bem? Eis o
nosso bacharel-escritor, ligeiramente alcoolizado, contando suas
aventuras em Sarandi.
Tiro, porrada e bomba
"A mãe da minha namorada berrava alto lá
embaixo, na garagem da sobreloja, aqui na Avenida Maringá. Achei que era
uma brincadeira, sei lá. Eu e minha namorada estávamos no topo da
escada, levando um monte de compras. Às sete da noite, numa sexta-feira,
tinha um monte de gente na rua, caminhão de lixo, ciclista, motorista,
vi que não era brincadeira: quando me dei conta, tinha um negão, alto e
forte, segurando a mãe da minha namorada contra a parede, prestes a
esganá-la. E o portão continuava escancarado. Até hoje não sei como fiz
aquilo. Eu tinha tomado uma e outra cerveja, é verdade. Daí soltei as
compras e corri escada abaixo. Chegando numa altura boa, dei um pulo e
carimbei meu All Star na boca do pelego. Foi uma bruta porrada. No chão,
depois, tive certeza que eu tava lascado: porque o negão era bombadão e
certamente ia me dar uma surra. Por sorte, ele levantou meio tonto. E
passei a meter socos e pontapés, na bunda e nas costas e na cabeça e na
boca do ladrão", vai contando Dalton, o nosso boêmio heroico. Olhos
esbugalhados - já viu bom escritor sem? -, toma uma cerveja e continua a
epopeia.
"Foi tudo muito rápido. Peguei o sujeito pela gola da
camisa e, do nada, já tava jogando e chutando ele para fora da garagem.
Bicho, você não acredita: cheguei na calçada e notei mais quatro negões
do bando, prestes a invadir a casa", comenta, tomando outra golada de
cerveja. "Como tava todo mundo surpreso e o sujeito tava todo
arrebentado, fugiram correndo até entrar num carro vermelho. Espantei
cinco bandidos de uma vez só", gaba-se, com razão, o nosso Dalton. Já
estamos na segunda garrafa, e ele vai dizendo que, depois disso, fez
questão de comprar um revólver. "Da próxima vez, não vai ser só o meu
All Star marcando a cara do vagabundo", prevê, com uma boa risada.
Gostei
do Dalton e parece que ele também foi com a minha cara. Exigimos outra
cerveja de Litrão – a grande sede de viver. À vontade, Dalton conta que,
antes de seu namoro, nunca havia perambulado por Sarandi. "Nem sabia
que tinha uma Avenida Maringá, nessa cidade." Em três anos de
convivência - com a cidade e sua digníssima -, o bacharel em Letras e
metido a poeta se meteu em outra confusão. O local? A mesma Avenida
Maringá, em frente a casa da amada.
"A gente tinha acabado de
voltar do lançamento de livro de um amigo meu, em Maringá. Estávamos
meio bêbados. Quando estacionei o carro, notei dois ciclistas se
aproximando. Dois branquelos de boné. Um deles, é Gaioto, né?, o seu
nome? Então, um deles, Gaioto, me encarou de uma forma muito estranha.
Como traduzir? Dois olhos vermelhos sedentos pela morte. Daí os
ciclistas pararam a uns cinquenta metros, no meio da Avenida Maringá, e
nos encararam novamente. A rua tava vazia. Não tinha carro passando, nem
gente nas calçadas. E minha namorada já estava do lado de fora do
carro, abrindo o portão da garagem. Notei, então, que um deles se
aproximava: magrelo e alto. Saí do carro, acionei o alarme, e minha
namorada começou a dizer 'não deixe o carro aí, estacione aqui dentro na
garagem', claro que não dava tempo para nada. Puxei ela com força para
dentro da garagem, gritei que trancasse o portão, uma duas, três vezes,
até que ela fechou. Por sorte, Gaioto, o portão fechou no mesmo momento
em que o cara imbicava a bicicleta: foi o que nos salvou", relata,
bebericando outro copão.
"Subimos na casa dela e, de lá, ouvimos
os gritos de socorro. Voz de mulher. Minha namorada queria descer e
abrir o portão e ver o que diabos acontecia na avenida. Claro que eu não
deixei. E se são os dois sacanas? Como da janela a gente não via nada,
ligamos para a polícia. Os gritos só pararam quando os dois ciclistas
saíram pedalando tranquilamente pela rua. Uns poucos carros foram
estacionando, os motoristas ligando para a ambulância. A polícia, lá
debaixo, fez duas ou três perguntas. Depois, vi na TV, o serial killer
de bicicleta esfaqueou uma mulher aleatoriamente no meio da rua. Não
quis carteira, dinheiro, nada: o simples prazer de esfaquear alguém. A
mulher morreu dias depois. Deixou família e filhos? Vai saber. Quando me
dou conta de que poderia ter sido eu, Gaioto, é uma sensação bem
assustadora", revela Dalton.
Já estamos ligeiramente
alcoolizados. A noite vai chegando. Divido as cervejas com Dalton e sigo
pela Avenida Maringá. Na Praça Ipiranga, uma morena de uns 14 anos, no
máximo, passa por mim com shortinho jeans apertado, cabelo liso,
blusinha curtinha exibindo barriga e decote, e grita para um grupo de
amigos, reunidos num banco perto da igreja, "cadê o meu baseado, pô?!".
"Aqui
na Praça da igreja, no meio da quadra de esportes, sempre tem uns
índios. Tipo uma vez por ano. Mas é muito índio mesmo, uns quatrocentos.
Fica todo mundo dormindo em rede, cabana, esquentando panela e cuidando
das crianças", diz um empresário.
Da praça da igreja e dos
índios sazonais, sigo para a Praça dos Três Poderes, bem iluminada e
bonita a seu modo. "Essa praça tem muita história", dedura a empresária
Irene Rinaldi. "Você sabia que, bem aqui, antigamente era um cemitério?
Como a cidade cresceu e chegou até esse ponto, tiraram todos os mortos,
um por um, e foram levando para outro canto. Por isso que a gente se
acostumou a tropeçar em esqueleto de morto e pisar no cabelo de
defunto", comenta, com uma boa gargalhada. É na praça dos Três Poderes
que os naturebas mais dispostos se arriscam em esportes radicais, como a
caminhada e a corrida diária. Quem não aguenta o tranco, tipo a
diarista Ivanilda Sousa, 40, refocila-se num banquinho. "Só consegui uma
volta, muita dor na coluna." Vinda de São Paulo, Ivanilda mora há duas
décadas em Sarandi.
Pergunto, a quem passa, como seria a Avenida
Maringá dos sonhos. "Cheia de boas padarias", sugere um empresário
quarentão. "Com um shopping bem grande, com boliche e cinema", exige o
jovem Natanael Eduardo, 12. "Repleta de bons bares", clama a estudante
Mariene. Mas, rapidamente, todos nós caímos na realidade. E a realidade,
vista assim, parece, para alguns, um tanto injusta. "Se em Sarandi tem a
Avenida Maringá, porque em Maringá não tem uma Avenida Sarandi? Isso tá
errado", reclama Carolina de Andrey, 20. "Seria bonito se Maringá desse
pra gente essa homenagem, né?", sugere a diarista Ivanilda Sousa, 40.
Na
esquina da praça, uma esfiharia ajeitadinha. Mesinhas de madeira e
acepipes caprichados: Big Esfihas. Com torre de chope, porções, pizzas
e, claro, sertanejo na trilha. "Confesso que não esperava um público tão
grande. Apostei no diferencial e abri um bar ajeitadinho. Coloquei tudo
o que aprendi, em 7 anos, numa esfiharia", comenta o empresário Jean
Oliveira, 22. "Os moradores de Sarandi, por falta de opção, acabam
gastando parte do salário em Maringá. Há muito espaço para investir
aqui", avalia.
Saio da esfiharia. Passo por um igreja com fiéis
bem à vontade, vestindo calça jeans e camiseta. Quarenta passos à frente
surge outra igreja, com religiosos em trajes elegantes: todo mundo
usando ternos sóbrios e vestidões longos, sem decote nem outras
gracinhas. Calmo demais, vou em frente. Autoelétrica. Pizzaria. Cheiro
da calabresa frita. Lanche do Baixinho. Loja de veículos. Farmácias.
Casa do Norte. Quiosque de cachorrão. Borracheiro. Rações e aquários.
Empório mineiro. Pássaros. Padaria. Dentista. De longe, escuto o
barulho. Show de dupla sertaneja? Revival de Milionário & José Rico?
Que nada. Outra igreja. Agitadona, essa, sim, eu me regalo. Na fachada,
a foto agigantada de um pastor com chapéu de cowboy – como não entrar
ali?
No meio do palco, um sujeito branquelo e careca parece
possuído pelo sertanejo "universitário". Gorducho e suando um bocado,
ele berra seu louvor no ritmo do arrocha. A letra da canção fala
qualquer coisa sobre satanás e diabo, mandando as duas entidades
demoníacas "para lá, para lá, para lá", ordena o pastor, enquanto bate
pernas desengonçadamente de um lado para outro do palco, frenético,
fazendo uma coreografia destrambelhada com as mãos, o eterno sorrisão
escancarado nos grandes lábios. A igreja está lotada. Duzentos a
trezentos fiéis. Velhos, crianças, moças, adultos, muitos chegaram e
ainda chegam de bicicleta – dezenas acumuladas num canto. "Gente, quem
entrou aqui chateado com a vida e agora tá mais feliz?", pergunta o
pastor, enquanto os fiéis vão tomando lugar em cadeiras de plástico.
"Olha, a gente tem que dançar mesmo. Porque o céu vai ser uma festa
eterna. Isso aqui, minha gente, isso aqui é só o aquecimento. No céu vai
ter muito mais", promete o sujeito, aos berros, iniciando outro arrocho
celestial. Nessas horas, dou graças a Deus por ser ateu convicto e
condenado, ai de mim, ao mais pérfido dos infernos do velho Dante.
Publicado no Diário (31/5/2015)
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