Os planos eram mirabolantes e cheios de luxo, no início dos anos setenta. Erguido na Avenida Brasil, num edifício imponente, com quatro andares e influências arquitetônicas do Modernismo, o atual Centro Comercial deveria ser uma espécie de Galeria Lafayette, reunindo lojas de roupas caras, perfumes europeus, joias, relógios e outros milhares de acessórios de gala.
Difícil imaginá-lo, assim, esquecido ao lado da Praça Raposo Tavares, com as paredes pichadas e surradas – restos resistentes da Maringá d'antanho. No lugar das lojas afrancesadas, os quatro andares foram tomados por advogados, contadores, cabeleireiros, dentistas, vendedores de auditórios para igrejas e até uns sujeitos desconfiados, silenciosos em escritórios sem fachadas, trabalhando sabe-se lá com o quê.
Passo pela farmácia na esquina, desviando de treze pombas obesas e de quinze barrigonas se fartando com cachorro quente – a salsicha na chapa é a perdição do gorducho. Vou entrando pela porta que dá para a Brasil. Quase todas as lojas têm portas de vidro: olhar e ser visto, nas ruas ou nos corredores. Óculos nas prateleiras, máquinas fotográficas antigas, dezenas de celulares. Aparelhões cinzas, vermelhos, azuis, modernetes, com câmera de vídeo e fotos em alta resolução – sonho de consumo de todo tarado, recebendo e enviando mil e uma obscenidades.
Difícil imaginá-lo, assim, esquecido ao lado da Praça Raposo Tavares, com as paredes pichadas e surradas – restos resistentes da Maringá d'antanho. No lugar das lojas afrancesadas, os quatro andares foram tomados por advogados, contadores, cabeleireiros, dentistas, vendedores de auditórios para igrejas e até uns sujeitos desconfiados, silenciosos em escritórios sem fachadas, trabalhando sabe-se lá com o quê.
Passo pela farmácia na esquina, desviando de treze pombas obesas e de quinze barrigonas se fartando com cachorro quente – a salsicha na chapa é a perdição do gorducho. Vou entrando pela porta que dá para a Brasil. Quase todas as lojas têm portas de vidro: olhar e ser visto, nas ruas ou nos corredores. Óculos nas prateleiras, máquinas fotográficas antigas, dezenas de celulares. Aparelhões cinzas, vermelhos, azuis, modernetes, com câmera de vídeo e fotos em alta resolução – sonho de consumo de todo tarado, recebendo e enviando mil e uma obscenidades.
Barbeiro das estrelas
No térreo, reencontro Nelson Ide, 71. Um barbeiro finíssimo, bom de prosa e, sobretudo, privilegiado. Proprietário do Ide Cabeleireiro, há 27 anos no Centro Comercial, Nelson aparou a cabeleira de todo o tipo de gente: gloriosas atrizes globais, ícones da UDR, baluartes do MST, três ditadores, quatro ex-BBBs depravadas e sete santíssimos cardeais. No início dos anos noventa, Bob Dylan era figurinha fácil: entabulava longas conversas com os clientes, quase sempre falando de Deus e das maravilhas provindas do Senhor. João Gilberto, Caetano Veloso e Elomar, ocupando num sábado de manhã as três confortáveis cadeiras do salão, chegaram a fazer planos para uma turnê, juntos, dividindo o mesmo palco e entoando somente canções de Dorival Caymmi. Desde que aderiu à reclusão, David Bowie dá as caras pelo menos cinco vezes por semestre, pede o corte de sempre e até dá uma palhinha, geralmente no final da tarde - prova irrefutável, o violão com a dedicatória carinhosa na parede do salão: "To Nelson, with love, Bowie".
Pintores, filósofos e fazendeiros abastados convivem em harmonia no salão do Nelson, que ainda conta, na labuta diária, com a ajuda de sua esposa, Nilda Ide, e da funcionária Cleuza Ferreira. Além dos cortes caprichados, o salão tem outro atrativo: um café de receita sigilosa, preparado com blends especiais. "Ninguém faz um café como o meu: é bebericando que a gente põe o papo em dia", conta Nilda. À base da cafeína, numa tarde de outono, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca saíram no braço, entre tapas e pontapés, após uma divergência sobre o processo de escrita do conto. Sebastião Salgado enxotou Romero Britto do salão, acusando-o de "louco", "incompetente" e "picareta". O cantor Otto soube, ali, que sua esposa, Alessandra Negrini, o traía descaradamente nas ruas do Leblon. Geraldo Vandré e Jards Macalé revelaram-se grandes piadistas. "Deveriam largar a música e fazer stand-up. Nunca ri tanto na minha vida", comenta um cliente que pediu para não ser identificado.
Fosse um desses barbeiros qualquer, Nelson teria ostentado no Facebook suas selfies com todos os figurões que passaram pelas suas mãos. Certamente, exibiria na parede do salão os retratos de todos eles – antes e depois de sua tesoura. Reservado e discreto, como todo bom oriental, limitou-se a exibição do violão. Quando questionado sobre os detalhes, porém, chega a negar que tantos encontros realmente aconteceram, inventando justificativas aleatórias para o instrumento autografado, exposto no salão. Tudo para preservar a intimidade dos clientes e evitar que seu pacato local de trabalho se transforme em parada obrigatória de fãs e paparazzis. "O que eu posso te dizer é que nossos clientes preferem o corte tradicional, não gostam de ficar inventando moda. Esse pessoal que gosta de cortes modernos fica mudando de salão para salão, dependendo da onda do momento. Aqui, trabalhamos com a tradição. Acredita que já estamos na terceira geração de clientes? Tem vez que vêm todos juntos: avô, pai e neto", comenta.
Nelson recusa falar da clientela estelar, mas topa abrir o bico sobre o Centro Comercial. "O prédio tem umas histórias engraçadas. Teve o caso do romântico suicida, há uns três anos. O sujeito levou fora da namorada, subiu aí pra cima e ameaçou se jogar. Só que desistiu e foi salvo pelos bombeiros", lembra, rindo. "Depois de uns dias, o sujeito voltou: ameaçou de novo, juntou um monte de gente, e ele não se jogou. Hoje em dia, ninguém mais faz isso em nome do amor, né?", comenta. Voltarei mais tarde, com tempo, cortar meu cabelo com Nelson. Peço um café, cortesia da casa: é mesmo o melhor café da cidade.
Algumas pessoas circulam de um lado para o outro, a caminho dos cabeleireiros, da cantina ou das vitrines de celular. Cumprimento o porteiro, que não desgruda os olhos do monitor, esperto às várias câmeras de segurança, e subo para o primeiro andar.
Pintores, filósofos e fazendeiros abastados convivem em harmonia no salão do Nelson, que ainda conta, na labuta diária, com a ajuda de sua esposa, Nilda Ide, e da funcionária Cleuza Ferreira. Além dos cortes caprichados, o salão tem outro atrativo: um café de receita sigilosa, preparado com blends especiais. "Ninguém faz um café como o meu: é bebericando que a gente põe o papo em dia", conta Nilda. À base da cafeína, numa tarde de outono, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca saíram no braço, entre tapas e pontapés, após uma divergência sobre o processo de escrita do conto. Sebastião Salgado enxotou Romero Britto do salão, acusando-o de "louco", "incompetente" e "picareta". O cantor Otto soube, ali, que sua esposa, Alessandra Negrini, o traía descaradamente nas ruas do Leblon. Geraldo Vandré e Jards Macalé revelaram-se grandes piadistas. "Deveriam largar a música e fazer stand-up. Nunca ri tanto na minha vida", comenta um cliente que pediu para não ser identificado.
Fosse um desses barbeiros qualquer, Nelson teria ostentado no Facebook suas selfies com todos os figurões que passaram pelas suas mãos. Certamente, exibiria na parede do salão os retratos de todos eles – antes e depois de sua tesoura. Reservado e discreto, como todo bom oriental, limitou-se a exibição do violão. Quando questionado sobre os detalhes, porém, chega a negar que tantos encontros realmente aconteceram, inventando justificativas aleatórias para o instrumento autografado, exposto no salão. Tudo para preservar a intimidade dos clientes e evitar que seu pacato local de trabalho se transforme em parada obrigatória de fãs e paparazzis. "O que eu posso te dizer é que nossos clientes preferem o corte tradicional, não gostam de ficar inventando moda. Esse pessoal que gosta de cortes modernos fica mudando de salão para salão, dependendo da onda do momento. Aqui, trabalhamos com a tradição. Acredita que já estamos na terceira geração de clientes? Tem vez que vêm todos juntos: avô, pai e neto", comenta.
Nelson recusa falar da clientela estelar, mas topa abrir o bico sobre o Centro Comercial. "O prédio tem umas histórias engraçadas. Teve o caso do romântico suicida, há uns três anos. O sujeito levou fora da namorada, subiu aí pra cima e ameaçou se jogar. Só que desistiu e foi salvo pelos bombeiros", lembra, rindo. "Depois de uns dias, o sujeito voltou: ameaçou de novo, juntou um monte de gente, e ele não se jogou. Hoje em dia, ninguém mais faz isso em nome do amor, né?", comenta. Voltarei mais tarde, com tempo, cortar meu cabelo com Nelson. Peço um café, cortesia da casa: é mesmo o melhor café da cidade.
Algumas pessoas circulam de um lado para o outro, a caminho dos cabeleireiros, da cantina ou das vitrines de celular. Cumprimento o porteiro, que não desgruda os olhos do monitor, esperto às várias câmeras de segurança, e subo para o primeiro andar.
Sebo fino
Outra loja de celular. Venda de aparelhos zeros e usados. Disposto a me livrar do mal do século, pergunto ao vendedor quanto vale a velharia que tenho em mãos. Surrado, retrô, dispara mensagens e – incrível! – até faz ligações: nada de internet nem de coisas modernetes. "Você me diz quanto quer, e eu te digo se quero comprar", avisa o vendedor. Peço R$ 500. Ele se espanta. "Nem a pau." Diminuo para R$ 250. "E tem documento?", ele pergunta, olhando o velho aparelho. Digo que sim. "Aguentaí, vou levar pro meu chefe." Pega o meu celular e some pela porta lateral. Quarenta segundos, o vendedor volta. "Hoje não, amigo. Fica pra próxima."
Azarado nos negócios, toco para o Musical Box, sebo de LP's e CD's do Aquiles. Entrar ali e sair de mãos vazias? Missão impossível. Já comprei, em outros tempos, discos do Assis Valente, Neil Young, Sá & Guarabyra, tudo em boas condições e preço justo. O sebo do Aquiles, pequeno e aconchegante, completou a maioridade neste mês: há 18 anos resistindo, no mesmo Centro Comercial, com o som puríssimo. Nadando contra a corrente, ele abriu o sebo com 300 discos quando o CD começava a dominar o mercado. Outras duas lojas de discos, na época, também funcionavam naqueles andares. Só restou o Aquiles.
Hoje, ele oferece maravilhas da MPB (Vicente Celestino, Chico Buarque, Luiz Gonzaga) e do rock, nacional ou internacional, além de duplas sertanejas. Há, também, umas coisas inusitadas, como o LP "Vibrações", de Alexandre Frota, autografado pelo artista. "Passo esse treco pra frente por qualquer cinco reais", sinaliza Aquiles. Enquanto conversamos, um sujeito se aproxima. Nas mãos, CD's com MP3 de Amilton Lelo e Moreno & Moreninho. Pedreiro alagoano de um metro e meio, negro, simpático e de fala acelerada – às vezes, com longos trechos incompreensíveis -, o sujeito pede que Aquiles copie aqueles dois CD's. E, no balcão, vai falando um pouco de sua busca e seus gostos.
"Ouvir música boa faz bem pra alma. E eu tô procurando também, rapaz, aquele filme, 'Na Trilha da Justiça', de 1975, o filme com o Teixeirinha, porque (trecho incompreensível). Lembro de ver esse filme na roça, no dia que morava, adolescente, na região lá de Goioerê. Já fui em loja de computador, gente com conhecimento profundo, e não consegue (trecho incompreensível) puxou tudinho, mas não era o que eu quero. Você me ajuda?"
Aquiles confessa que nunca ouviu falar do filme. Vou explicando que, infelizmente, também não faço ideia. O alagoano pega os CD's copiados e toma seu rumo. Eu também saio pela galeria - um compacto do Geraldo Vandré debaixo do braço.
Cantos sem fachada
Azarado nos negócios, toco para o Musical Box, sebo de LP's e CD's do Aquiles. Entrar ali e sair de mãos vazias? Missão impossível. Já comprei, em outros tempos, discos do Assis Valente, Neil Young, Sá & Guarabyra, tudo em boas condições e preço justo. O sebo do Aquiles, pequeno e aconchegante, completou a maioridade neste mês: há 18 anos resistindo, no mesmo Centro Comercial, com o som puríssimo. Nadando contra a corrente, ele abriu o sebo com 300 discos quando o CD começava a dominar o mercado. Outras duas lojas de discos, na época, também funcionavam naqueles andares. Só restou o Aquiles.
Hoje, ele oferece maravilhas da MPB (Vicente Celestino, Chico Buarque, Luiz Gonzaga) e do rock, nacional ou internacional, além de duplas sertanejas. Há, também, umas coisas inusitadas, como o LP "Vibrações", de Alexandre Frota, autografado pelo artista. "Passo esse treco pra frente por qualquer cinco reais", sinaliza Aquiles. Enquanto conversamos, um sujeito se aproxima. Nas mãos, CD's com MP3 de Amilton Lelo e Moreno & Moreninho. Pedreiro alagoano de um metro e meio, negro, simpático e de fala acelerada – às vezes, com longos trechos incompreensíveis -, o sujeito pede que Aquiles copie aqueles dois CD's. E, no balcão, vai falando um pouco de sua busca e seus gostos.
"Ouvir música boa faz bem pra alma. E eu tô procurando também, rapaz, aquele filme, 'Na Trilha da Justiça', de 1975, o filme com o Teixeirinha, porque (trecho incompreensível). Lembro de ver esse filme na roça, no dia que morava, adolescente, na região lá de Goioerê. Já fui em loja de computador, gente com conhecimento profundo, e não consegue (trecho incompreensível) puxou tudinho, mas não era o que eu quero. Você me ajuda?"
Aquiles confessa que nunca ouviu falar do filme. Vou explicando que, infelizmente, também não faço ideia. O alagoano pega os CD's copiados e toma seu rumo. Eu também saio pela galeria - um compacto do Geraldo Vandré debaixo do braço.
Cantos sem fachada
Com exceção dos fregueses que entram no sebo do Aquiles, não há pessoas nos corredores do primeiro andar. Passo por escritórios de advogados e de contabilidade - alguns, fechados. O velho e desgastado letreiro informa que, à minha frente, fica a Centro América Imobiliária. Na entrada, o antigo balcão de madeira e a cadeira de couro desbotado. O escritório acumula pilhas de carimbos, montes de listas telefônicas, papéis e anotações nas mesas de madeiras.
Dois simpáticos senhores setentões, sentados em suas respectivas mesas, vão logo contando os causos da imobiliária. "Estou aqui há 42 anos", comenta o proprietário Benedito Luiz, o Bene, 73. Curioso, pergunto a ele se alguma coisa mudou nesses anos todos. Ele responde sorrindo. "Que nada. Basicamente, tudo continua a mesma coisa." Há nesses anos todos, uma coisa que poucas pessoas sabem, adianta o Bene. "A cruz que hoje tá lá na Catedral, sabe? Ela é de um artista plástico que tinha um atelier lá na Colombo. E antes de ir para a igreja, a Cruz ficava aqui no Centro Comercial", comenta. Isso eu não sabia, digo. "Teve até um rapaz que se desequilibrou, pelo que parece, e caiu do primeiro ou segundo andar. Como ele não se machucou, ficou todo mundo dizendo que era milagre de Deus, porque foi tudo pertinho da cruz", recorda, rindo. Com o surgimento da Catedral, Jesus, então, foi levado para dentro da igreja. "E ninguém nunca reclamou a falta da cruz", diz.
O barulho diminui no segundo andar. Único som, carros se esgoelam na Brasil. No consultório de um dentista, impossível identificar o número do telefone – a escrita não resiste ao tempo. Letras garrafais, que provavelmente eram vermelhas, hoje amareladas anunciam o principal serviço: IMPLANTES DENTÁRIOS. Na portinha do consultório, uma imagem santificada sorri acima da frase: "Jesus vive e é o Senhor". Entro na antessala vazia do consultório e o alarme estridente dispara. Quatro antigas cadeiras de madeira aguardam os muitos clientes. O chão está sujo de terra e poeira. Na parede, oito quadrinhos e um certificado de honra ao mérito, todos tortos, decoram a espera de ninguém. O alarme soa cinco minutos, nenhum dentista aparece. Vou embora.
Dois simpáticos senhores setentões, sentados em suas respectivas mesas, vão logo contando os causos da imobiliária. "Estou aqui há 42 anos", comenta o proprietário Benedito Luiz, o Bene, 73. Curioso, pergunto a ele se alguma coisa mudou nesses anos todos. Ele responde sorrindo. "Que nada. Basicamente, tudo continua a mesma coisa." Há nesses anos todos, uma coisa que poucas pessoas sabem, adianta o Bene. "A cruz que hoje tá lá na Catedral, sabe? Ela é de um artista plástico que tinha um atelier lá na Colombo. E antes de ir para a igreja, a Cruz ficava aqui no Centro Comercial", comenta. Isso eu não sabia, digo. "Teve até um rapaz que se desequilibrou, pelo que parece, e caiu do primeiro ou segundo andar. Como ele não se machucou, ficou todo mundo dizendo que era milagre de Deus, porque foi tudo pertinho da cruz", recorda, rindo. Com o surgimento da Catedral, Jesus, então, foi levado para dentro da igreja. "E ninguém nunca reclamou a falta da cruz", diz.
O barulho diminui no segundo andar. Único som, carros se esgoelam na Brasil. No consultório de um dentista, impossível identificar o número do telefone – a escrita não resiste ao tempo. Letras garrafais, que provavelmente eram vermelhas, hoje amareladas anunciam o principal serviço: IMPLANTES DENTÁRIOS. Na portinha do consultório, uma imagem santificada sorri acima da frase: "Jesus vive e é o Senhor". Entro na antessala vazia do consultório e o alarme estridente dispara. Quatro antigas cadeiras de madeira aguardam os muitos clientes. O chão está sujo de terra e poeira. Na parede, oito quadrinhos e um certificado de honra ao mérito, todos tortos, decoram a espera de ninguém. O alarme soa cinco minutos, nenhum dentista aparece. Vou embora.
Mistérios da meia-noite
"Bom mesmo era quando tinha o Clube do Lobisomen", lembra, saudoso, um empresário setentão. Aberto apenas para convidados seletos, o bar funcionava no terceiro andar do prédio, com juízes, advogados e políticos se refestelando com cerveja geladinha e um e outro acepipe. Na trilha, bolachões de Ray Coniff e Casino de Sevilha. Às sextas, o clube abria das seis da tarde à meia-noite. "Fechávamos precisamente nesse horário. Depois da meia-noite, cada um saía pra se aventurar nas ruas maringaenses. Se alguma esposa reclamasse do horário, era só dizer que passou a noite com a gente, no Clube do Lobisomem", lembra, com um sorriso sacana.
Sigo para o terceiro andar. O Clube do Lobisomem faz falta por aqui. O silêncio dominando os corredores – qual o barulho do abandono? Passo por uma sala vazia, empoeirada, com pastas e papeis no chão. Não há qualquer nome na fachada. Outro escritório de advogado solitário? Mais um de contabilidade? Um sujeito gordo e de camisa verde anota um monte de coisas em agendas, sentado à única mesa, no pouco que resta da sala. À sua frente, dois anosos sofás de couro.
"Tudo bem? Aqui é o quê?", pergunto.
"Aqui? Uma sala."
Uma confusão de agendas pretas e marrons, pilhas de papeis rasurados, pastas, anotações. Longas contas aritméticas ou um extenso poemeto épico? – que azar, a maldita miopia.
"Escritório de advocacia?"
"Não, não. Uma sala que alugo. É minha."
"É uma empresa?", questiono.
"Empresa? Não, não", responde o sujeito, com alguma relutância.
"Então aqui é o quê?", insisto.
"Aqui não é nada", resume o sujeito, encerrando a nossa conversa.
Dou a última olhada: o sujeito gordo e de camisa verde volta a anotar uma porção de coisas nas agendas espalhadas pela mesa. Redigiria, ele, um grande poema existencialista sobre o nada? Vá saber.
Ainda no terceiro andar, passo por outro escritório de contabilidade – na parede da antessala, um quadrinho de violino azulão, pintado ao lado de uma partitura. A alguns metros dali, um dentista trancou o consultório com cadeado e deixou aviso de "volto já" pregado na porta, informando o número do celular. No consultório abandonado, outro quadrinho decorando a antessala: uma rua no centro da tela, sobrados à esquerda, um dia ensolarado. Seriam obras de um mesmo manco artista?
Sigo para o terceiro andar. O Clube do Lobisomem faz falta por aqui. O silêncio dominando os corredores – qual o barulho do abandono? Passo por uma sala vazia, empoeirada, com pastas e papeis no chão. Não há qualquer nome na fachada. Outro escritório de advogado solitário? Mais um de contabilidade? Um sujeito gordo e de camisa verde anota um monte de coisas em agendas, sentado à única mesa, no pouco que resta da sala. À sua frente, dois anosos sofás de couro.
"Tudo bem? Aqui é o quê?", pergunto.
"Aqui? Uma sala."
Uma confusão de agendas pretas e marrons, pilhas de papeis rasurados, pastas, anotações. Longas contas aritméticas ou um extenso poemeto épico? – que azar, a maldita miopia.
"Escritório de advocacia?"
"Não, não. Uma sala que alugo. É minha."
"É uma empresa?", questiono.
"Empresa? Não, não", responde o sujeito, com alguma relutância.
"Então aqui é o quê?", insisto.
"Aqui não é nada", resume o sujeito, encerrando a nossa conversa.
Dou a última olhada: o sujeito gordo e de camisa verde volta a anotar uma porção de coisas nas agendas espalhadas pela mesa. Redigiria, ele, um grande poema existencialista sobre o nada? Vá saber.
Ainda no terceiro andar, passo por outro escritório de contabilidade – na parede da antessala, um quadrinho de violino azulão, pintado ao lado de uma partitura. A alguns metros dali, um dentista trancou o consultório com cadeado e deixou aviso de "volto já" pregado na porta, informando o número do celular. No consultório abandonado, outro quadrinho decorando a antessala: uma rua no centro da tela, sobrados à esquerda, um dia ensolarado. Seriam obras de um mesmo manco artista?
Deus é mais!
Vejo um aviso numa das salas: "Tudo para a sua igreja: valorize seu templo com auditório". Como não entrar? Diferentemente de algumas salas, esta tem porta de madeira. Bato e logo sou atendido.
"Boa tarde, você quer o quê?", pergunta um jovem atendente, o mesmo sorrisão nos grandes lábios.
Na pequena saleta, dezenas de cremes e outros produtos de beleza se espremem nas tantas prateleiras.
"Aqui é o quê?"
"Depende. O que você quer?", pergunta, ligeiro, o rapaz.
"O aviso na porta diz que vocês vendem auditório para igrejas, mas, pelo jeito, também oferecem produtos de beleza, né?"
"É. Desde que a crise começou, há um ano, nosso movimento caiu 90%. Estamos começando agora com os cremes", conta.
"E vocês fazem auditórios para qualquer igreja?"
"Exato: para todas elas, sem preconceitos."
No quarto piso, nada de cabeleireiros nem auditórios ecumênicos sob encomenda. A primeira sala comercial traz, em vez de malfadados quadrinhos capengas, um grande painel exibindo o azul do mar, dezenas de palmeiras, coqueiros e ondas quebrando debaixo do sol infernal. Deve ser revigorante trabalhar nesse escritório, debruçando-se sobre as leis, a poucos centímetros da praia paradisíaca. Sigo. Tropeço em mais escritórios de advogados e contadores, esbarrando na infinidade de saletas vazias. No Sindicato Nacional dos Aposentados, um silêncio comovente - nem entro. Onde foi parar todo mundo? Onde a nobre clientela da Lafayette maringaense? Como seria bom tomar a saideira no Clube do Lobisomem, com a vitrola tocando "El Sítio de Zaragoza" e "Granada" – saudosismo não é a negação do presente doloroso? Sou arrebatado pelo vazio. Quieto, desando a escrever versinhos existencialistas. Daqui de cima, a Avenida Brasil é um filme mudo de carros coloridos.
Publicado no Diário (21/6/2015)
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