Num canto da rodovia PR-317, a alguns quilômetros do aeroporto, a
Ceasa (Centrais Estaduais de Abastecimento) é um universo à parte de
Maringá, com suas rotinas, cidadãos e meios de locomoção específicos.
Disposto a vasculhar almas entre frutas, verduras e legumes, chego à
Ceasa às quinze para as sete de uma terça-feira - os últimos boêmios, no
Bar do Jô, ainda longe de encarar a eterna odisseia de volta para casa.
Da entrada - há quantos metros? -, você já escuta o desafinado coral de
gritos, assovios, ronco de caminhões, risadas graves e estridentes
escapulindo das tantas goelas. "Vai começar o piseiro", definiria o
nobre vereador Negrão Sorriso.
Vou me aproximando, lentamente,
tentando amenizar o choque com a manhã preguiçosa. Subo a rampa, ramela
ainda brotando nos olhos, rumo às primeiras lojas. Nos poucos passos,
tropeço em batatas, tomates, vendedores, jacas, muitos compradores,
berinjelas, legumes e frutas não-identificados. No lixo, laranjas e
tomates azedos vão impregnando o ar puríssimo, alguém pergunta "e a
cebola, quanto tá?", mas não ouço resposta do vendedor, só a réplica do
sujeito, "vou levar quatro caixas", e é tudo muito rápido, surgem mais
jacas, laranjas e gente passando de um lado para o outro, difícil
acompanhar direito a transação, impossível identificar um rosto na
multidão que talvez me soe familiar. Por sorte, não sei como, é um
milagre, Deus é mais!, não sou atropelado, atrofiado, pinchado no chão
por dois compridos carrinhos de madeira, carregados com dezenas de
caixas e puxados por figurões que raspam minhas canelas canhestras. Num
canto seguro, menos movimentado, repenso a estratégia: atenção redobrada
em cada passo.Um mínimo deslize te deixa manco, coxo, perneta.
Nos
corredores, negros, bombadões, magrelos, branquelos, japoneses,
produtores rurais tingidos de terra, vão circulando e conversando e
vendendo e comprando num ambiente extremamente masculinizado. Onde se
refugiaram as nossas musas maringaenses? Uma pena se afastar, logo
cedinho, de todas elas.
Atento aos carrinhos furiosos e às caixas
de madeira no chão, noto a penca de troféus na parede de uma das lojas.
Seis deles, prateados e dourados, frutos das disputas futebolísticas.
Ali, uma baita muralha de zagueiro? Anônimo lateral impiedoso? "Não vou
mentir, não, viu? Nosso timinho jogava mais ou menos nos campeonatos do
Ceasa", comenta, coberto de modéstia, o empresário e atacante Delson
Bulla, 50. Noto a preferência de Delson: "o Ceasa", não "a Ceasa". Há 32
anos no ramo, ele - tal como tantos outros - prefere o tratamento
masculinizado: nome mais robusto para um trabalho que é uma pauleira. Ao
talentoso atacante, pergunto sobre as ninfas. Ele me dá um tapinha nas
costas, num tom de lamento. "É toda hora encarando caixas de 20 quilos,
num serviço bruto, pesado. Raras mulheres aguentam o tranco", adianta.
De
chapelão na cabeça, debando do box. Quinze caçambas escancaradas,
recebendo caixas de tudo que é tipo. Um cheiro azedo queima a narina –
limões bagaçados debaixo do caminhão. Sigo adiante, rumo ao outro
pavilhão de lojas. Tento acompanhar, em vão, o carrinho puxado por
Adriano Gomes da Silva. É incrível como ele desafia o espaço geográfico.
Há um mês na cidade, vindo de Paraíso do Norte, Adriano teve que
aprender rápido a perambular entre pernas e trecos e caixas de frutas e
legumes. "Eu já trabalhava com lajota, não achei difícil carregar isso
aqui", comenta, antes de sair em alta velocidade, guiando seu carrinho.
No
Ceasa, ninguém marca bobeira. "Se você atrasar, perde os melhores
produtos", comenta o empresário Alexandre Braga. Filho de comerciantes,
ele cresceu com o Ceasa. Há uns anos, debandou para o Mercadão
Municipal, onde abriu uma frutaria. Acostumado às madrugadas do Ceasa,
ele teve que chegar, nesta terça, às cinco em ponto. "Nesse tempo todo
que passei aqui, muita coisa mudou. O preço, principalmente: as coisas,
cada vez mais caras."
Abóbora cabotiá. Milho verde. Maçã Gala.
Couve-flor. Alguém revira as caixas de tomates, conferindo a qualidade
da mercadoria – ou procura LP's raros num sebo bagunçado? Passo por um
Camaro vermelho, estacionado ao lado do Caminhão do Miltinho,
emparelhado com o caminhão da Galera do Repolho, e são caminhões
amarelos, azuis, vermelhos, brancos, pretos, num arco-íris psicodélico
de caminhões antigões.
Rotina viciante
Os dias mais corridos são segunda, terça, quinta e
sexta. "Quarta e sábado a gente vem só pra conversar", diz Elizeu de
Souza, 27. Ele trabalhou por três anos no Ceasa de Cascavel. Logo nos
primeiros dias, viu que, controlando a venda de uva, caqui, mamão e
abacaxi, havia encontrado, finalmente, um trabalho com o qual se
identificava. "O ritmo é muito diferente. Tem que levantar às três da
madrugada, mas meu expediente vai até as dez da manhã. Não tem que
trabalhar à tarde, como num emprego comum. É melhor assim", comenta.
Flanando
no Ceasa, estranho não encontrar com os amigos de outras crônicas. Onde
os índios kaingangs com balaios coloridos? Onde os pastores de
sorrisões nos grandes lábios? Onde a famosa onipresença do
Todo-Poderoso? Enquanto me dedico a pequenos pensamentos hereges – não é
que as palavras têm mesmo força? -, eis que surge um soldado do Senhor.
Uma muralha com a camiseta escrita "Orai com Fé" - possível orar sem?
"Minha vida daria um filme", diz o sujeito, grandalhão e gente fina.
"Trabalhei como segurança e agora tô aqui: cinco meses puxando carrinho.
Muito prazer, viu? Todo mundo me chama de Montanha", diz, estendendo a
mão. Digo ao Montanha que deve ser um trabalhão e tanto. "Você se
acostuma. É como escrever: você, de repente, não pega um jeito?"
Enquanto fala sobre sua vida, vai cumprimentando quem cruza a nossa
frente. "Esse é o cara da alface, esse o da cachaça, esse o da jaca", e
vai emendando piada com um e outro. Engana-se, porém, que matando o
serviço e enrolando o horário. "Conversar é essencial. É assim que os
grandes negócios são feitos: você tá conversando e também tá vendendo."
Japonesa ameaçadora
Ofegante com a caminhada - esse Ceasa não
acaba nunca? -, encontro o bendito fruto. A primeira mulher. Uma
japonesa atenciosa. "O povo daqui sofre muito e ganha pouco", reclama a
vendedora, que vai logo me oferecendo um molho de pimenta artesanal (R$
5). Já viu gorducho recusar acepipes? Aceito, claro, e passo o molho
picante no chips – qual boa pimenta não remete ao êxtase com a primeira
mulher nua, no escurinho do quarto desconhecido, olhos lacrimejando
emoção? É de lamber os dedos, a pimenta oriental. "Agora, prove isso
aqui, ó: doce de Jiló." Epa! Jiló? Jamais. Tem limite, a epopeia
maringaense. Onde o adicional por insalubridade gastronômica? "O bom
jornalista tem que provar de tudo", desafia a japonesinha, rindo para
dentro, ameaçadora com seus docinhos cristalizados. Estendo a mão ao
menor dos jilós – ou balanço a mão do velho leproso? Arremesso goela
abaixo, de uma só vez, o tal docinho. Quem escorrega na sua garganta – o
minúsculo jiló ou três treminhões arrancando ladeira abaixo? Abro os
olhos, aliviado: não é de todo ruim.
Chega de fortes emoções. Uns
metros à frente - ou pra trás?, pro lado?, caramba, onde estou mesmo?
-, encontro outra funcionária. Mais uma mulher resistindo no ambiente
masculinizado. "É até melhor, sabia? Não tem fofoca nem briga boba.
Trabalhar com mulher é só confusão", diz Carla Rebelato, 38.
Cafeína literária
Num dos blocos do Ceasa, acho um café. Rostos
cansados se engalfinham no balcão. Ninguém fala com ninguém. Sento num
dos bancos, peço um café. Do meu lado, uma senhora serelepe se aproxima:
um presente embrulhado, olhos curiosos de azuis.
"Então, você é o Gaioto?"
"Depende", respondo ligeiro – jamais revele seu nome de guerra no campo de batalha.
Voz trêmula - a mesma entonação de minha vó? -, rapidinho estende a mão e senta no banco ao lado.
"Meu
nome é Rita Andrade de Paula. Tenho 76 anos, sou mãe de quatro filhos,
moro sozinha, e há muito tempo quero me encontrar com você."
"Como você me achou aqui?", pergunto, surpreso.
"É possível esbarrar no Alexandre Gaioto em cada esquina dessa cidade."
"E você confirmou isso mesmo!"
Nós dois rimos, embriagados de preguiça e manhã.
"É sempre bom encontrar uma leitora", digo, sorrindo, enquanto peço um cafezinho para Rita.
Leitora
fiel, ela revela que não perde os textos dominicais. Passa a semana
inteira esperando as próximas aventuras. Entre meus tantos obrigados -
qual voz mais trêmula, a dela ou a minha? -, Rita diz que sempre quis
ser escritora. No balcão, estende o embrulho colorido com lacinho
vermelho. Toda minha, uma garrafa de vinho francês Hâteauneuf du Pape:
"Presente para o meu recluso boêmio querido. Agora que finalmente te conheci, posso te fazer algumas perguntas?"
Tão gentil, você negaria?
"Pra quê esses olhos tão grandes?"
"Jamais perder um mínimo detalhe."
"E esses dedos, por que tantos calos?"
"Marcas das tantas escritas."
"Por que insiste em usar chapéu?"
"Nele moram todas as minhas mentiras."
Os olhos trêmulos, a voz sussurrada.
"E tudo o que você escreve, Gaioto, é mesmo verdade?"
"Tudo é real no universo da ficção."
Ela abre um sorriso.
"Quais conselhos aos jovens escritores?"
"Escrever bem é pensar bem."
"E uma segunda dica?"
"Evite reticências... maldito recurso covarde."
"Último pedido: dança uma valsa comigo?"
Penso
duas vezes. Quem não? Em meio a cenouras e milhos, eu e Rita encarnamos
uma valsa de Strauss: dois pra lá, dois pra cá. No caos das compras e
carrinhos do Ceasa, ninguém se importa com os nossos passos vienenses,
guiados pelos violinos e cellos soando ao longe. Quase nove da manhã. A
orquestra, de repente, silencia. À Rita, ergo minha taça de vinho. O
Ceasa continua barulhento e vibrante, como deve ser.
Publicado no Diário (14/6/15)
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