domingo, 17 de maio de 2015

Casais fetichistas, cheiro verde, musa, eu, tu e ele na UEM muda

Desde que iniciou a série de textos dominicais sobre Maringá, o cronista Alexandre Gaioto vem adotando uma postura altamente condenável nesta empresa. Encerra o expediente antes do horário, chega para a labuta visivelmente alcoolizado e, com o bafão de pinga e o vozeirão altissonante, dispara mil e uma ameaças contra as pobres senhoras que preparam o cafezinho de O Diário – ai delas, se acrescentam um tiquinho só de açúcar a mais! Que fique claro, nunca gostei do que ele escreve. Em cada linha do Gaioto, você se depara com um português rasteiro, humor boboca, caldo nauseabundo de pseudo-escritor de autoajuda. Mesmo assim, graças às crônicas malfadadas, as vendas da edição dominical triplicaram e dezenas de cartas e e-mails chegam diariamente ao jornal, em tons que oscilam entre elogios a ameaças de morte (as minhas favoritas). Com a repercussão dos textos, Gaioto se deu ao luxo de fazer uma série de exigências exóticas, todas imediatamente cumpridas pelo alto escalão do jornal: 1) Uma sala de 40 metros quadrados, isolada dos demais repórteres, com jacuzzi para até doze pessoas, sofá-cama amarelo mostarda, escrivaninha Luís XIV e uma máquina de escrever Underwood (igual à do Hemingway), onde passou a redigir seus textos. 2) Aumento de 65% do salário, que, agora, ele recebe não em reais, mas em euros. 3) Um Camaro Amarelo (alugado ou presenteado pela empresa, ninguém sabe ao certo) para se deslocar entre sua casa e o jornal. 4) Duas massagistas chinesas, 24 horas por dia à sua disposição. 5) Uma chefe de cozinha taiwanesa para preparar seus almoços vegetarianos, com produtos orgânicos e alimentos à base de soja, incluindo tofu, tudo especialmente para ele e seus convidados.

Eu que não sou besta, e já andava meio desconfiado desse fanfarrão, resolvi sacaneá-lo. Interfonei à sala onde ele permanece recluso e cheio de regalias, e pedi que fizesse uma incursão pelos cantos silenciosos da UEM. "Afinal", fui dizendo, "a nossa universidade, atualmente paralisada com essa greve aí, precisa ser retratada por algum grande escritor, alguém de peso!". Gorducho e medindo pouco menos de um metro e meio, Gaioto sacou minha ironia. Tanto que nada não respondeu. Dez minutos depois, foi visto saindo do jornal, arrancando em alta velocidade a bordo de seu Camaro Amarelo.

Fui segui-lo. Levei vinte e dois minutos para chegar na Zona 7, pedalando minha magrela. Em vez de preparar a matéria, como eu imaginava, lá estava o bon vivant, regalando-se com cerveja de litrão e espetinhos de carne e frango, no Afonso's Bar. Com o beberrão matando trabalho, resolvi cumprir a missão e toquei para a UEM. Acha que só ele leu meia dúzia de livros? Qualquer Zé ruela, perdido entre o hermetismo, o constrangimento parnasiano e o jogo vocabular, escreve essas picaretagens de ó ninfa dos meus luares!, ó azeite de oliveira puríssimo!, ó arcanjo descido do céu de vestidinho e decotinho! Bobagem. Na esquina da UEM, vou apurando, a venda de cachorrão quente no Lanche do Toninho caiu 30%. "Tô torcendo pra que volte logo, viu?", comenta Andrei Briolli, 27. Por lá, o que mais saía, nos movimentados dias de aula, era o cachorro quente com alcatra (R$ 15), preparado com salsicha, 200 gramas de alcatra, batata palha, tomate e cebola.

Com o sinal fechado, noto algo interessante. Meto um cadeado na minha magrela e vou me aproximando. Elegantemente vestido, de cartola na cabeça, terno preto, gravatinha borboleta e camiseta branca, o casal equilibra bandejas, oferecendo chips, bolachas e barras de cerais lights entre os carros. Ele sorri para a motorista, que rapidinho abaixa o vidro. Ele mostra os produtos, ajeitados numa bandeja cinza, e vende, finalmente, um pacote de chips. O sinal abre. Cavanhaque aparado, fala mansa, bom de prosa: o vendedor é jovem. "Em todas as esquinas da cidade tem gente oferecendo alguma coisa. Estar bem apresentado faz toda a diferença no comércio", admite Iuri Renan, 24, enquanto vai me apresentando à esposa, Dulci Paina, 33, que trabalha com ele. Faz três dias que Iuri pediu as contas de uma famosa loja de sapatados da cidade para voltar a trabalhar nas ruas. "É meio viciante. E, por incrível que pareça, dá mais dinheiro que trabalhar num emprego 'comum'. Não é tão gostoso trabalhar dentro do sistema", avalia. Pergunto ao casal se a paralisação da UEM prejudica as vendas. "Negativo. Não faz nenhuma diferença. Em duas horas de trabalho,vendemos quase todo o estoque."

Amor de cidade
Há cinco meses, o casal resolveu debandar de Campo Grande (MS), onde vendia açaí nas ruas, e tocar para Maringá. Único problema, a filha de 4 anos permanece ao lado dos pais, sentadinha na calçada. "O Conselho Tutelar já ameaçou tirar a guarda da minha filha. Dizem que ela tem que ficar na creche, mas eu já fui atrás de creches e não tem vagas. Parece que essa semana eles vão arranjar uma escolinha." O sinal volta a abrir. "Mesmo assim, moço, nós amamos Maringá". O casal pede desculpas e corre, equilibrando bandejas, entre um veículo e outro.

Quarenta e três anos nas costas, fico feliz com o "moço". Vou entrando na UEM. Há quanto tempo eu não entrava na UEM? Cheguei a cursar Agronomia, isso em 1989, quando o picareta do Gaioto tinha lá um ou dois anos de idade. Mal entro, vou ouvindo o som de batuques ecoando na UEM. Ritmados, agudos e graves: a batucada de tambores infernais. Não são os tais índios kaingangs que o Gaioto tanto fala, em algum ritual a favor das chuvas e xamãs? Apresso o passo, tenho que achar esses índios. No meio do caminho, encontro um casal, conversando numa sombra revigorante, fugere urbem total. Ali, você acompanha o cantiquinho do bem-te-vi, o vento penteando as árvores, ouve todo o silêncio de um campus emudecido. "Esse silêncio só não é gostoso porque é algo imposto. Estamos sendo calados. Essa nossa condição é até ridícula", comenta o estudante de Direito Alvino Nascimento, 20. "Todos nós preferimos o agito das aulas, o agito intelectual", avalia a garota.

Num primeiro olhar, a UEM parece morta. Mas não. Embora os cursos de graduação estejam parados, tem muita gente que ainda continua na labuta. Alunos da graduação, do Mestrado e do Doutorado, todos envolvidos em projetos de pesquisa. Na empresa júnior de Biomedicina, três estudantes cumprem seus turnos. "A gente se programa para não sair depois das 18h. A UEM, principalmente nesses dias, tão vazia, é ainda mais perigosa à noite", diz Izadora Rossi, 19. Na sala ao lado, num laboratório de ecologia de mamíferos, um aluno, com o olho metido no microscópio, vai separando suas sementes de Cecropia. "Se eu não faço isso, as sementes fungam", justifica. Com alunos de Enfermagem, em outra sala, mais reuniões e relatórios, todos tocando adiante um projeto com incentivo federal. Alguém apresenta slides sobre marketing social – deve ser algum Mestrado. Dois homens, em cima da caçamba de um carro, se esforçam para consertar o motor da capela de exaustão, de um dos laboratórios. "Nem todo mundo tá parado por aqui, não é mesmo?", diz um deles, com uma boa risada. É verdade. A UEM não para. E, enquanto vou andando, vou anotando as opiniões dos alunos e funcionários: todos a favor da greve – um e outro mandando mensagens nada alegres para o governador.

Lá pelas tantas, encontro Elton Savi, 27, aluno do Doutorado de Física. Ele mantém a rotina na UEM, continua indo ao campus para frequentar o laboratório de pesquisa, onde testa técnicas alternativas para caracterização de biodiesel. Ele não gosta do vazio da UEM e vai falando de sua rotina numa boa, mas quando descobre que sou jornalista de O Diário, muda abruptamente seu comportamento. "Você não é o tal do Gaioto?!", questiona, a voz raivosa, olhar cheio de ódio. "Não, não, não", vou justificando. Ele só fica à vontade quando vê minha credencial: Rodrigo Parra, pauteiro. "Tá certo, Rodrigo, é que não suporto aquele palhaço. Uns amigos meus moram num condomínio, aqui em Maringá, e tão emputecidos com ele. Planejamos uma sova coletiva, tortura, algo do tipo", anuncia. Gostei do Elton. Parece gente boa. Fã de Paul McCartney e Oasis, ele diz que deveríamos publicar uma matéria criticando o sertanejo "universitário". "Acredita que tem uma dupla sertaneja que agora toma banho de chuveiro, no meio do palco, no meio do show?" Digo que sei. Li em algum lugar isso daí. E, conversando com Elton, lembro das "Notas para uma definição de cultura", que o T. S. Eliot escreveu em 1948: "E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura". Com shows de sertanejos tomando banho em cima do palco e com a UEM fechada, vou dizendo ao Elton, é exatamente o que estamos vivendo: um tempo desprovido de cultura. Ele concorda e vai embora. Antes, anota meu celular para combinarmos a tal sova coletiva.

Estou perto do bloco de Letras e Agronomia. Vejo o mural, com panfletos e avisos. Que eclético! "Rússia restringe importação de carnes de 8 frigoríficos brasileiros."; "Vítima alcoolizada não é desculpa para estupro. Você sabia?"; "Curso teórico-prático de coleta de sêmen e inseminação artificial de equinos. Objetivo: capacitar coleta de sêmen de garanhões utilizando vagina artificial."; Eu, hein. Lugar estranho, procuro outros cantos.

Sem furação
"Tô preocupado com a paralisação. Quando as aulas voltarem, as provas vão vir todas de uma só vez", prevê o aluno de Engenharia de Alimentação Gabriel Rodrigues, 18. Por isso mesmo, ele está aproveitando a tarde para estudar um pouco, além de preparar seus relatórios na cantina. "Ficar em casa é entediante, mas todos nós, alunos, estamos com os professores. O que eles fazem é legítimo", diz. E, por ali, não tem professor fura-greve. "Parece que o único caso é de uma professora de Agronomia, mas não tenho certeza."

Com a paralisação, duas cantinas resistem na UEM: a Central e a próxima ao restaurante universitário. "A gente praticamente está pagando para trabalhar. Abrimos, mesmo assim, em respeito aos funcionários e estudantes que ainda estão aqui", diz Tânia Fávaro. O pai dela começou com a cantina, ao lado do restaurante universitário, há duas décadas. Hoje, é Tânia quem vende os salgados e refrigerantes. "Nossa clientela diminuiu 99,9%. Essa é a segunda pior greve de todos esses anos. A primeira foi em 2000, que fechou por seis meses. Aquilo foi um horror", lembra. Uma das clientes da cantina está cursando Psicologia. Com o notebook aberto numa das mesas, ela aproveita a internet grátis, já que não tem acesso ilimitado na própria casa. "Não é das melhores conexões. Mas, no ponto onde estou, até que é mais ou menos", avalia.

Sexo, não!
"Tem que abrir e fechar porta de sala de aula, acender luz e ficar de olho em quem entra para tentar depredar a UEM", resume o vigilante Joanide Candido. No meio da greve, os três turnos de seguranças continuam firmes e fortes no campus: das 13h às 21h, das 21h às 5h e das 5h às 13h. "Todo mundo sabe que os professores estão certos. Esse governo é uma brincadeira, né?" Além de roubos e de ficarem ligeiros a qualquer cheiro verde, os seguranças estão de olho nos casais metidos a fetichismos, naturalismos e exibicionismos. "Dentro de carro e nos cantos escuros, a gente fica esperto. É só dar uma folgadinha, que o pessoal já quer fazer sexo ao ar livre."

Estou rodando esse campus há cinquenta minutos. Até agora, nada de índios kaingangs (o som dos tambores desapareceu misteriosamente) nem de musas e ninfetas do Olimpo, do Valhala, de sei lá onde. Fácil, o trampo do Gaioto. Fica enchendo a cara nos bares, inventando as tantas histórias, e depois, confortavelmente instalado em sua sala luxuosa, envia as oito páginas datilografadas. Azar o meu, digitar letra por letra daquele bêbado excêntrico para o computador.

Já estou quase debandando da UEM quando vejo, de longe, uma cena paradisíaca. Sentadinha em frente à Biblioteca Central, a estudante de Medicina Maria Fernanda, de 23 aninhos, veio coletar o dinheiro da inscrição da Jornada de Pediatria, programada para o final do mês. Combinou, via Facebook, que os interessados levassem a grana até lá. "A greve atrapalhou um pouco as inscrições, mas todos estamos a favor das paralisações. Os professores têm que reivindicar mesmo." Ela vai ficar na UEM até de noitinha. Digo à Maria que fique esperta, tome cuidado com o dinheiro. "Tudo muito deserto", aconselho. Ruivinha, ela abre um sorrisinho, exibindo belas covinhas. Não é o mesmo olhar da ruiva do Friso de Beethoven, do Klimt? Deus é mais, deus é mais! Bem casado, não posso me dar às estripulias eróticas-textuais em que o Gaioto mete suas personagens dominicais. Abandono a ruiva na UEM – o amor é o grito suicida na goela do gago.
Noite tensa
Não marco bobeira. Lá pelas oito e pouco, a UEM fica meio sinistra. Tudo quieto demais. Escuro demais - onde foi parar a nossa ruivinha do Klimt? Tem, sim, uns jovens jogando basquete e a galera natureba suando a camisa na malhação. Num último canto iluminado, um garoto, com skate, para em frente a um cachorro. Faz carinho no bicho e propõe a brincadeira: "E aí, dog, quer dar um passeio?" Mas a ternura animalesca perde o brilho no breu dos blocos e das árvores. Magrelo e franzino, eu que não me meto nesses cantos, não. Essa é a missão do Gaioto, gorducho e encrenqueiro, para a próxima semana, numa quarta à noite, a partir das 21h – Elton e seus colegas do condomínio já estão a par.


Publicado no Diário (18/5/2015)

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