segunda-feira, 4 de maio de 2015

Chegadas, Jesus e índios. Partidas, medos e santos

Vestidinho dourado, saltinho alto, decotinho generoso: todos os homens cobiçavam navegar na imensidão daqueles olhinhos azuis - ou seriam verdinhos? Inteligente, capaz de se virar em qualquer assunto, Maura pedia um drinque ao cliente e pela mão o conduzia a um dos sofás vermelhinhos. Na trilha, bem alto, um bolero de Lucho Gatica, outro de Manolo Otero. Quantos ex-presidentes, jovens endinheirados e figurões da MPB não confessaram suas travessuras, entre fumaça de cigarros e perfume cítrico baratinho, à nossa musa dos lábios de mel? No sofá, há quem amaldiçoasse a ruindade da esposa. Outros lascavam a culpa na tal crise da meia idade. Todos, de peito aberto e língua tremelicante, amaldiçoando o inferno da vida a dois – o casamento é o sepulcro do amor. Coxas macias, pele branquíssima e um pescocinho de enlouquecer Modigliani, Maura oferecia graça infinita. Distribuía risada alegrinha, reinventava suas histórias entre as palmas febris dos corações. Na Avenida Augusta, em São Paulo, arrebatava batalhões de homens boquiabertos, imperando em boates mitológicas, como a Mandala e a Rosa da Noite. "Assim, a minha vida inteira", desabafa, baixando os olhos, sentadinha num dos bancos do Terminal Rodoviário de Maringá.

São nove horas da noite e a rodoviária está cheia de gente. "E vou te contar, viu?", diz ela, cochichando. "Se eu acho alguém para me pagar setenta, oitenta reais, faço programa agora mesmo", sinaliza. Só falta encontrar alguém. Aos 64 anos, aparentando ter pelo menos uns 84, Maura tem a pele enrugadona. Enquanto tira o cobertorzão amarelado de cima do corpo, exibindo o vestidão rosa, observo seus pés agigantados, crosta rochosa amontoando a poeira das mil caminhadas. As imensas unhas dos pés, macilentas e encarquilhadas, em nada lembram os pezinhos cobiçados na Pauliceia Desvairada. O azedão do suor, falta de chuveiro e chuvarada. Últimas lembranças da gloriosa beleza dos tempos d'antanho? Os olhos verdes e azuis perderam a intensidade, seu canto já não seduz o mais surdo dos Ulisses.

"É aqui que eu durmo, por enquanto: no banco da rodoviária. Como não me deixaram entrar no albergue, eu fico aqui." Mãe de sete filhos, todos eles com casa própria, a nossa heroína vive nas ruas há três anos, desde que seu namorado morreu e a família dele vendeu a residência onde o casal morou por dois anos. "Minha filha é dona de duas empresas aqui em Maringá. Tão rica que tem sete carros, sabia?", revela a doce senhora. Mesmo assim, com a filharada endinheirada, ela prefere viver sozinha, dormindo as noites por ali. "Todos os meus filhos me tratam muito mal", reclama. "E moço, por favor, coloque aí na sua TV que eu preciso de uma casa. Que alguém me dê qualquer uma, de preferência, no Parque Grevileas: é meu sonho morar lá de novo. Porque eu não tenho comida nem teto. Tá vendo? Tudo o que me resta é isso", diz, apontando para todo o seu patrimônio: a manta amarelada e dois carrinhos com sacolas plásticas e bolsas surradas.

Bate saudade
De figurões da alta sociedade às ex-musas retrôs da noitada paulistana, a rodoviária maringaense vai recebendo tipos de toda a fauna social. É um cenário tão caótico, com gente correndo e gritando e rindo e carregando tantos trecos que me lembra até um condomínio maringaense, com seus – ah, deixa pra lá. No meio da bagunça de uma sexta-feira à noite, a rodoviária é um porto de saudades. Casais apaixonadíssimos selam os últimos beijos – no ouvido, juras secretas de amor eterno e cama sempre caliente. Adolescentes se despedem dos pais. Crianças acenam da janela. Um velho embarca sozinho - pela última vez? - em sua solidão.

Quem espera encara o tédio com celulares ultramodernos. Vê TV sem som. Livro, que é bom, nem sinal – nem livro ruim surge por lá. "O problema é que são todos caros. Os livros deveriam ser mais baratos, para o povo ler mais", comenta o dono da única banca de revistas da rodoviária, que trabalha há duas décadas no mesmo ponto. Com um punhado de livros em mãos, ele é o maior leitor daquelas bandas. Devorador das próprias estantes, já encarou quase tudo que está à venda: da autoajuda de Augusto Cury aos romancetes fanfarrões de Paulo Coelho e John Green. De todos os autores, Cury é seu favorito. "Gostei tanto do livro que até fui assistir uma palestra dele no Marista. O Cury é um fenômeno, tá sempre no programa da Fátima", indica.

Das 7h às 10h, a banca de revista está de portas abertas. O lucro maior, ele conta, vem dos livros. Mas não é qualquer tipo de literatura. "Quem vende mesmo são os religiosos", diz, apontando para as estantes. Há livros espíritas ("O Morro das Ilusões"), católicos ("Benvindo Espírito-Santo") e adventistas ("Casamento Blindado: O Seu Casamento À Prova de Divórcio"), todos na faixa de R$ 25, exceto os textos espíritas da Zíbia Gasparetto. "Os dela são sempre mais caros porque, como ela tem a própria editora, o preço já vem fixado na capa do livro: R$ 35. É muito caro", reclama.

Na loja ao lado, nada de literatura religiosa. Em vez de livros, desodorantes enfileirados. Guarda-chuva de R$ 13,90. Cachimbos. Carrinhos de plástico. Isqueiros. E, onipresente nas estantes, Ele de novo: Deus, cercado por santinhos e outras figuras do bando celestial. Fitinhas do Senhor do Bonfim. Miniaturas de santos fosforescentes. Desenhos de um santo não identificado, ajoelhado de frente para Jesus – em cima, a inscrição bem grande: "Lembrança de Maringá". Em madeira, dezenas de miniaturas da Catedral. Penca de pôsteres da Catedral. Cartões postais da Catedral. É muita fé para uma só cidade.

Lorota de pescador
Do lado de fora da lojinha de Jesus e outros utensílios indispensáveis, um sujeito magrelo empunha duas varas de pescar – outro pescador de homens, de olho gordo nos fiéis? Sorridente, Anderson Muller, 25, nem parece ter duelado com a morte, há poucos dias. O carro que ele dirigia capotou feio, no meio da estrada, e ele ainda está um bocado machucado. "Sorte que não aconteceu nada demais. Tô todo ferrado. Meu rosto e meus braços tão todos machucados, ó, tá vendo?" Enquanto ele se recupera, aproveita o atestado médico para se dedicar à pesca e à natureza, onde se entrega a pensamentos mais profundos, repensando os rumos - e a velocidade – que sua vida tomou. Da rodoviária, ele seguirá para a casa da irmã. Depois é só pegar as varas e tocar para a ponte do rio Ivaí, em Floresta. "Em uma hora você pega, pelo menos, dois peixes. Semana passada pesquei trinta e oito! Tinha Curimba, Dourado e Piapara", garante. Provando que não é lorota de pescador, exibe no celular as fotos dos peixões abatidos.

Em meio a pescadores sortudos, um cego surge na multidão. Ele acaba de desembarcar, leva uma mochila nas costas. Uma mulher oferece ajuda. O cego aceita, estende o braço. Devagar e em silêncio, segue riscando o chão com a bengala cinza, rumo à saída da rodoviária. Sem avisar, resolvo seguir o cego. Graves e irritantes, quantos motores de ônibus roncando ao mesmo tempo? "Garcia, São Paulo. Vinte e duas horas. Garcia, São Paulo." O som das caixas ecoa, a voz aveludada de um homem anuncia o próximo ônibus. Barulho de malas e rodinhas e de gente levantando do banco, alguns desafinam espreguiçadas. "Vamos, amor, tá na hora." Parece a voz daquele cantor. "Se chover, pegue um táxi e ligue para o seu tio." Aguda e estridente, uma mãe. "Tá, mãe, tá, mãe." Acertei a mãe: agora, respondendo, a adolescente. "Erebango goioxim ti jog. Ti jog!" Êpa, essa língua eu conheço até de olhos fechados: não são os indinhos kaingangs perambulando, certamente com seus balaios coloridos, de um lado para o outro da rodoviária? "Será que tem água lá dentro do ônibus?" Voz rançosa, de velha paulistana: eterna preocupação da falta de água. Conversas diminuem. De longe, impossível identificar qualquer conversa. Cochichos. Alguém ri. Barulho de carros. Motores. Motos. Portas batendo, uma, duas, chave na ignição. Alguma notícia sobre a economia, voz grave e soturna do apresentador de TV. "Táxi? O senhor precisa de um táxi?", indaga a mulher que acompanha o cego até a saída da rodoviária.

Como o cachorro não late nem dá sinal de vida, o cego não descobriu a Nina: uma cadelinha querida por todos, que recebe água, ração e carinho dos funcionários da rodoviária e dos moradores da região. Também não notou a casinha da Nina, confortável e limpinha, logo ali na entrada. Com ajuda do taxista, o cego entra no carro e guarda a bengala.

Rei do camarote
Na rodoviária, dá para esbarrar em todo o tipo de gente. No aeroporto, nem tanto: climão de balada. Moçoilas engalanadas, jovens e adultos metidos em ternos elegantes, senhorinhas com brincões douradões vão encontrando a parentada, distribuindo beijos, afagos, novidades. A catarse beijoqueira é contagiante, e também sinto vontade de arremessar bitocas a queridos desconhecidos. Beijos para Madalena Stocco, leitora danada de boa. Beijos à jovem violinista loirinha da Osesp, que executava Manuel de Falla com a mesma concentração da "Rendeira", do Vermeer, e cujo nome, infelizmente, nunca descobri. Beijos às benditas senhoras que preparam o café do jornal, vou arremessando, mentalmente, enquanto perambulo pelo aeroporto. Nada de cegos. Nada de gritaria nem de correria. Nada de índios kaingangs.

Belchior entende
O melhor do aeroporto não são seus viajantes da alta sociedade, com relatos de um certo oriente e milhares de milhas acumuladas. Vou andando. No segundo andar conheço Hilda Viana, 38. Ela pôs seus pés pela primeira vez num aeroporto há exatamente nove meses, quando aceitou a proposta de emprego num café do aeroporto maringaense. Antes disso, era ela na terra e os aviões no céu. Acompanhando dezenas de pousos e decolagens, diariamente, enquanto serve cafezinhos e salgados, ela agora morre de curiosidades para ver o mundão lá de cima. "Queria viajar para qualquer lugar, sabe? Só pra ver se dá mesmo medo", comenta. Trabalhando ao lado de Hilda, no mesmo café, a maringaense Vilma Lúcia, 42, também nunca viajou de avião. Se precisa correr trecho, ela pega algum ônibus e, na poltrona, mete o fone no ouvido para curtir o rock do Talking Heads, Queen e Guns N' Roses. Se pudesse debandar nesse exato momento, ela, com a imaginação lá nas alturas, tocaria direto para Fortaleza. "Aproveito para andar de avião e conhecer o mar: tudo pela primeira vez", imagina. Menos disposta a dar asas à imaginação, a balconista maringaense Jessica Fernandes, 18, diz que jamais toparia a aventura de um voo. "Nem se eu ganhar uma passagem para a França! Sei que Deus faz milagres e tudo, no caso de um desastre, mas não é bom facilitar."

Bomba a bordo
Os riscos em voar existem sempre. Trabalhando em aeroportos desde os 18 anos de idade, Francisco de Souza lida diariamente com esses riscos. Experiente, passou por quase todos os grandes do País, de Belém a Manaus, São Paulo e Curitiba, até chegar em Maringá. Aos 62 anos, ele divide o espaço com mais três controladores de voos, na torre do aeroporto. "É um clima sempre tenso: estamos preparados para qualquer coisa", comenta. Trancafiado na torre, a maior tensão que ele viveu foi em Campo Grande (MS). "Fomos informados que havia uma bomba a bordo de um avião, em 1984. A companhia aérea que nos avisou, parece que alguém tinha denunciado à administração do aeroporto. Foi o momento mais tenso da minha carreira como controlador. Conseguimos, no final, fazer com que a aeronave pousasse em segurança. Os passageiros desceram, seguidos pelos funcionários. Não passava de alarme falso", lembra.

Entre chegadas e partidas, dois mundões discrepantes. Como escolher entre a hibridação social de um e as aventuras do outro? Saio de cena com índios, violinistas sensuais, Deus e muito medo. Já é tarde. Abandonada num banco da rodoviária, uma doce senhora sonha com sua mansão no Parque Grevilea – o sorriso quase desaparece debaixo do cobertor amarelo.

Publicado no Diário (3/5/15)

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