Não é só disposição. Tem que ter espírito aventureiro, determinação
e, principalmente, muita sede para resistir às 24 horas em Maringá. Na
terra das 457 duplas sertanejas e dos 17 mil índios kaingangs com
balaios coloridos, tem sempre alguma coisa rolando. A minha Maringá, nos
finais de semana, é intensa. Acordo cedo, às oito e pouco, nos sábados.
Hora de pôr a leitura em dia, atacar Proust, Wilson Martins, Joyce,
Roberto Schwarz, devorando quem estiver pela frente. No climão do
aniversário da cidade, meto um bolachão na vitrola - o som puríssimo!
Frank Sinatra começa a entoar "My Kind of Town", declaração de amor à
sua cidade favorita, Chicago. Maringá é minha Chicago, reflito, enquanto
vou saindo de casa, assobiando a canção.
Depois da leitura, hora de flanar pelas ruas maringaenses. Longe da
Champs-Élysées, o jeito é perambular pela Avenida Brasil. Loja de
calçados. Banca de jornal. Tênis em promoção. Guarda-roupa em até dez
vezes sem juros. Óculos, milho verde, calcinha, goiaba. No Centro, a
parada obrigatória: Sebo Cultura. Pego um banquinho, sento próximo aos
LPs. Xuxa. Agnaldo Timóteo. Roberto Nunes. Discos de R$ 5 a R$ 10. Não
quero nada disso. Continuo garimpado. Chitãozinho & Xororó. Moacyr
Franco. Odair José. E não é que encontro o grande Karajan levantando do
monturo, regendo a "Heróica", do Beethoven, por apenas R$ 2? Disco e
capa novinhos. Separo. Quinze minutos depois, esbarro em Bernstein,
também novinho em folha, assumindo a batuta das Sinfonias 5 e 8, do
Beethoven. Desembolsando só R$ 4, deixo o sebo com duas gravações
primorosas debaixo do braço. Como não amar Maringá?
Noites infernais
Quase onze da manhã. Depois de garimpar LPs em
bons sebos, bate a vontade do café. Numa das mesas do Café da Santa
Casa, peço meu espresso (R$ 2,75). O melhor da cidade. Te mantém
acordado por sete dias e sete noites. Gosto de ficar ali, ouvindo
histórias alheias. O café abre cedo, às 7h30. "O maior desafio é acordar
nesse frio", comenta o dono, Itamar de Mendonça, 37, com uma boa
risada.
No café, encontro um amigo. Ele está se formando em
Medicina, tem os olhos cansados e parece abatido. Desde cedo, quando
estudávamos juntos no colégio, ele gostava de assistir a vídeos
estranhos. De um macaquinho que tomava porrada na cabeça, com dois ou
três martelinhos, até que conseguiam abrir a cabeça dele, explorando o
sangue e as entranhas e a meleca que jorrava de lá. Nunca tive estômago
para essas coisas. E mesmo esse meu amigo não consegue lidar com a vida e
a morte das noites maringaenses. "Eu e o médico plantonista chegamos a
atender quase 20 pacientes por noite. Só desgraça. Tem mulher com um
câncer incurável, menina com um coágulo profundo no cérebro,
caminhoneiro que recaiu nas drogas e até um homem de 50 anos que jogou
gasolina no próprio corpo e depois ateou fogo, na frente de um bar. Não
estou legal, não", desabafa.
Tento levantar o ânimo do meu amigo.
Digo para enchermos a cara. Cansadão, ele recusa. Depois da noite em
claro, ele só quer dormir. "O sono é o prenúncio da morte", eu digo a
ele, citando Shakespeare. Meu amigo dá uma risada sem graça. Pagamos os
espressos. Hora de tocar para o almoço.
Cachaça com Fidel
Há mil e um restaurantes, dos mexicanos aos
baianos, passando pelos lusitanos aos italianos, tudo em Maringá: opções
gastronômicas não faltam. Mas prefiro me regalar em casa. Forro bem o
estômago. Sem comida, você não sobrevive à noite maringaense. Coloco
Beethoven na vitrola, leio mais alguma coisa. Lá pelas cinco, é hora de
começar a se ajeitar. Tomar banho, encarar o primeiro bar da longa
odisseia alcoólica
Começo pontualmente às 17h30. Escolho um
lugar aleatório. Onde nunca me aventurei. Sozinho. Um botequinho perto
do Parque de Exposições - você vampiriza as melhores histórias nos
lugares que não conhece. E lá escuto as aventuras de um velhinho
simpático, com sotaque gaúcho. Ao dono do bar, ele fala algo sobre Che
Guevara e Fidel Castro. Com o boteco vazio, vai descrevendo a sede do
Comitê Central do Partido Comunista, em Havana: lotada de figurões. Peço
uma cachacinha e chego perto do balcão. A Revolução Cubana havia sido
feita há mais de uma década, vou ouvindo, e Fidel Castro, sentado ao
centro da grande mesa, propôs uma discussão sobre os rumos de Cuba.
Quando Fidel abriu o microfone aos demais camaradas, ele, o nosso
velhinho simpático, membro de confiança do Partido cubano, foi o
primeiro a se manifestar. E, na presença de Fidel, criticou duramente a
política externa adotada pelo partido.
"Eu era contra a relação de Cuba
com a Rússia. Disse para todos, na Plenária, que Cuba deveria romper com
a Rússia e deixar de ser um país mercenário da União Soviética", lembra
o velhinho, com uns oitenta anos. Revoltados, os camaradas exigiram que
ele se retirasse imediatamente da Plenária. Em meio ao bate-boca
protagonizado pelos políticos presentes, Fidel Castro, em silêncio, saiu
de seu lugar e foi ao encontro do homem que acabara de lhe criticar
diante de todos os comunistas. "Ele me pegou pelo braço e disse
exatamente assim, para todo mundo ouvir: 'Este, sim, é um verdadeiro
comunista. Um homem que defende suas opiniões na frente de quem quer que
seja. Vejam: ele não está criticando a revolução, está criticando as
formas. É preciso respeitar as opiniões divergentes'", recorda, um
bocado emocionado.
Cheio de histórias, o comunista diz ter sido
preso em Porto Alegre, em 1964. Permaneceu encarcerado por três anos,
acusado de trabalhos clandestinos. Ele estava queimado por participar de
ações com o MST e de ser ligado ao partido da Ação Popular. "Eles me
enchiam de porrada. Depois, me perguntavam alguma coisa e eu gritava:
'Viva a Revolução cubana!' E lá vinha mais porrada", lembra. O nariz
torto é lembrança da pancadaria na cadeia; a cicatriz na cabeça, também.
"Eles me algemavam, cruzavam minhas mãos para trás e batiam nos meus
testículos com um pedaço de madeira", relata.
Derrubando aviões
Exilado
em Cuba, garante ter sido aluno de Che Guevara. "O Che me ensinou tudo
sobre a guerra. Se tivéssemos que enfrentar um grupo de 10 mil homens,
com um exército pequeno, o que faríamos? Uma das estratégias era jogar
cobras, à noite, onde o exército inimigo dormia: no dia seguinte, não
estariam nas melhores condições. Quando matávamos um soldado, furávamos a
barriga dele com um espeto e deixávamos o corpo à mostra, para que os
outros soldados, quando vissem aquilo, enfrentassem uma tensão
psicológica", revela.
E já estamos na quarta ou quinta cachaça,
no bar vazio, quando ele começa a lembrar dos dias sangrentos da
Nicarágua. Em 1979, pondo em prática os ensinamentos de Che, ele ajudou a
derrubar o ditador Anastasio Somoza, apoiado, à época, pelo governo
estadunidense. "Nossa participação foi muito rápida. Mas derrubei muitos
aviões norte-americanos, com metralhadora. Matei vários soldados que
tentavam escapar, saltando de paraquedas: tinha que fuzilar antes deles
chegarem ao chão", lembra. "Na guerra, não há mocinhos. Todos são
bandidos. As únicas diferenças são os ideais."
Pelinhos fosforescentes
Brindamos à Fidel, Che, brindamos à
revolução, e vou saindo do bar fascinado com o nosso revolucionário. A
noite só está começando. A caminho do Afonso's, na Zona 7, faço uma
rápida parada no Stop Bar, da Vila Operária. Às sete da noite, um
sujeito de uns setenta anos, com a calça arriada e suja de fezes,
sentado no meio fio, tenta balbuciar, em vão, alguma coisa. Olhos
melancólicos, a baba escorrendo no canto da boca, velha camisa
desabotoada. Quem observa a cena é uma negra muito gorda, de shortinho
laranja apertadinho, blusinha decotadinha e cabelinho brilhante. De
braços cruzados, na frente do Stop Bar, ela ameaça o sujeito.
"Se você não sair daqui, vou chamar a polícia."
O
sujeito volta a resmungar. Vou entrando. Mesas de plástico. Cadeiras de
plástico. Jukebox com músicas de Altemar Dutra e Amado Batista. Cada
uma por R$ 0,50. Ali, o prazer não tem hora para terminar. "A gente fica
até o último cliente", garante a proprietária, de 70 anos. Há mais de
três décadas, o mitológico inferninho mantém sua proposta: cervejas de
600 ml (a Brahma custa R$ 8), porção de bisteca (R$ 10) e, para os mais
famintos, modeletes oferecendo-se a R$ 45 e R$ 70, dependendo do seu
poder de negociação – o quartinho com colchão e pia "é por conta da
casa". Ali, sou querido por todas. Uma morena cinquentona, de sainha
rosa e decotinho, exibe o sorrisinho banguelão: no canto esquerdo do
lábio, a verruga escura com mil pelinhos fosforescentes. Quantos
cidadãos beneméritos não se perderam no caminho de casa, numa pausinha
casual ali no Stop Bar?
Tomo uma cachacinha. Basta de aventuras.
Sete e meia, já estou no Afonso's, na Zona 7. Casa cheia. Famoso pelas
cervejas mais baratas da cidade. Lá, encontro Luigi, Baiano, Jackie
Chan. Vamos bebendo e falando. Balzac. Jazz. Proust. Hemingway. O último
do Dylan, cantando Sinatra. Entre um e outro espetinho, vão chegando
Daniel, Nelson, Zal, alguém traz mais cerveja. O tempo passa rápido
quando a gente se diverte. E já são meia-noite, o Afonso's fecha daqui a
pouco. Hora de tocar para outro bar, o Divina Dose.
Santo pecado
À meia-noite e pouco, o Divina Dose está lotado.
Casais apaixonados. Estudantes. Empresários. Musas. Tem de tudo. Seu
Valter e Dona Ione, os donos divinos, já vão arrumando uma grande mesa. E
mais cerveja. E mais cachaça. E vai chegando mais gente. Gordão, Celso,
Lila,Gazolli, Diny, Taisa, e alguém traga mais um copo e mais cadeiras.
E na mesa do bar vamos falando sobre Harold Hart Crane. Ele também era
chegado em porres homéricos, levava uma rotina rimbaudiana e fumava
adoidado. Numa de suas noitadas, bêbado, e talvez um tanto louco e
amargurado, Crane se jogou de um navio, em alto-mar, sem mais
explicações. Para os críticos, a visão do caos que rondava o espírito do
autor, foi o que o consumou, tão cedo, aos 33 anos. Se eu tivesse a
intensidade do lirismo do Crane, eu também teria me matado aos 33 anos,
talvez até mais cedo. E, ligeiramente alcoolizados, vamos todos erguendo
os copos e brindando ao grande Crane.
Mozart ou Bach?
Às três horas da manhã, a sede ainda é grande.
Hora do Bar do Jô. O famigerado bar que nunca fecha. É meio longe, lá
para os lados do Detran, mas a cerveja é sempre gelada e o rock rola
solto. Vamos entrando. Casais, grandes grupos, várias ninfas. Ruivas,
loiras, morenas. E lá vem o Jô, recepcionando a galera. Conta que veio
de Curitiba. Tratar de um câncer, ou algo assim. Acho que já estou meio
bêbado. Alguém traz mais uma cerveja. E, aqui, Jô resolveu ficar. Também
uma Água de Valeta. O que ele queria era um bar de rock. E conseguiu.
"Eu adoro essa cidade" - quem diz isso, o Jô, alguém da mesa, eu mesmo?
Uma banda manda ver no Creedence. "Traz mais uma cerveja?" Rolling
Stones. Papos da noite veloz. Daniel insiste que Bach é melhor que
Mozart. "Almodóvar é um lixo." Gordão reclama do sertanejo
"universitário". " Mozart tem 'A Flauta Mágica'". "Almodóvar é um
gênio." "Bach tem os 'Concertos de Brandenburgo'". Bom mesmo é Bohuslav
Matinu, eu vou dizendo, que compôs os "Três Cavaleiros" com 12 anos de
idade. "Mais uma cerveja, por favor." Uivamos para a lua, todos
completamente embriagados às sete horas da manhã. No Bar do Jô, tudo
funcionando regularmente.
Do grupo, todos resistem à maratona
alcoólica. Tocamos para a feira. Pastel de palmito e sodinha gelada.
Gente que saiu de festa de casamento, bar e o diabo. Aposentados que
acabam de acordar, gente indo caminhar. Noite e dia se esbarram no tacho
da fritura. Que aventura. Guerrilheiro cubano. Sujeito de calça arriada
e cheia de fezes, no inferninho do Stop. Quantos papos e musas nos meus
bares favoritos: Afonso's, Divina Dose, Bar do Jô. Essa, a minha
Maringá: do Beethoven a R$ 2, dos mil e um bares e das tantas noites
infinitas.
Publicado no Diário (10/5/15), em comemoração ao aniversário da cidade
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