Roberto Silva entra na Redação de O Diário às dez para as duas.
O homem que já resolveu casos antes mesmo da polícia, chegando a
arrancar confissões de experientes criminosos, tudo em primeira mão,
mede um metro e setenta e pouco.
Magrelo, usa tons sóbrios: calça jeans azul escura e camisa
jeans da mesma cor. Nos pés, botinas pretas feito a morte – talvez,
dessas impermeáveis. O mito do jornalismo policial maringaense tem sua
mesa num canto da Redação, debaixo do ar-condicionado e a três passos da
cruz boiando na parede. Acessa os e-mails e vasculha, ligeiro, um e
outro site. Basta. Pega um café.
Conversa com três jornalistas, exibe no celular hipermoderno as
fotos de um corpo banhado em sangue, arrancando um “Deus me livre, que
horror!”, de uma delicada editora japonesa, e repete a piada que vem
disparando, diariamente, há 32 anos nos corredores do Diário,
perguntando se alguém, por ali, “tem um furo pra dar”. E, como sempre,
por incrível que pareça, a velha piada minimalista funciona: não há riso
que resista ao trocadilho sacana. Pense errado, não. Furo, caro leitor,
é só um jargão jornalístico para uma notícia exclusiva.
“Tô indo pra delega. Quer mandar notícia pra algum preso?”
A moçoila responde com uma boa risada – a cabeça negando até a alma.
“Então, vamos nessa, Gaioto.”
Não é qualquer um que tem o aval de Roberto Silva para
mergulhar, ao seu lado, no submundo do crime. Avesso a exposições
midiáticas, o jornalista de 55 anos tem um lado meio recluso. “Meu sonho
era fazer uma matéria na TV com esse cara. Mas ele nunca aceita. Não
gosta de aparecer”, comentaria, horas mais tarde, o repórter de TV Jota
Junior.
Entramos num Palio do jornal. Saindo da empresa, ele berra ao porteiro:
“Quer mandar recado pro Tião Coca-Litro?”
O porteiro cai na risada, o dedo indicando jamais. Nunca que
ele quer envolvimento com o tal Tião, famigerado protagonista do
universo piadístico de Roberto Silva. “Faz trinta anos que o Tião tá lá
trancado, sem sexo, na solitária. Quer passar a noitada com ele,
Gaioto?!”
De tudo vai rolar
Bem casado há vinte anos, Roberto Silva gosta de Bob Dylan,
Rolling Stones, Pink Floyd. Não suporta Beatles nem João Gilberto.
Cervejas, cachaças e uísques também não fazem sua praia. Enquanto
acelera nas ruas maringaenses, rumo à 9ª SDP (Subdivisão de Polícia),
vai adiantando o que poderemos esbarrar pela frente.
“É sempre uma incógnita. Pode ter muita coisa, e também pode
não ter nada. E prepare-se: você vai ver muita bobagem. Gente que
registra boletim de ocorrência porque foi xingada no Facebook e um monte
de outras ocorrências à toa, de roubinho besta e trecos amalucados.
Aliás, 70% dos crimes não existiriam se a população fosse mais cuidadosa
com seu próprio patrimônio.
Por exemplo: o cara viaja pra praia e gasta R$ 300, todo o
dia, bebendo cerveja e comendo camarão de frente pro mar. Mas deixa a
casa dele, que não tem grade nas janelas nem câmera nem muro alto, toda
abandonada. Daí alguém rouba a casa, e o sujeito ainda bota a culpa na
polícia”, comenta, antes de frear bruscamente, numa esquina próxima da
Avenida Colombo, para uma senhora serelepe cruzar a faixa de pedestres.
“Gosto dos velhinhos. Da molecada, não: moleque eu passo por cima”, brinca.
Chegamos
à delegacia em inacreditáveis nove minutos. Rostos tristes em pé,
sentados, famílias inteiras debaixo da árvore fugindo da fúria solar. E
já estamos entrando na delegacia, quando toca o celular dele. Durante a
ligação, Roberto Silva assume as mesmas características que o grande
Stefan Zweig notou na estátua que Rodin fez de Balzac: a surpresa de
alguém arrancado bruscamente do céu para cair numa realidade que já
havia esquecido.
O olhar de uma grandiosidade aterradora que se assemelha a um
grito. Aquela expressão fisionômica de quem é sacudido em pleno sono.
Aquele aspecto de sonâmbulo, junto ao qual se pronuncia brutalmente o
nome. O mito do jornalismo policial dá meia volta. E, correndo em
direção ao carro, começa a dizer que uma de suas fontes passou os
detalhes de um corpo, encontrado, nesse exato momento, às margens do
Ribeirão Morangueiro, entre os Jardins Alvorada e Oásis, na zona norte.
Aperto o cinto, tranco a porta. Roberto Silva volta a pisar fundo nas
ruas maringaenses.
Córrego mortífero
O grito estridente da mulher atravessa a Avenida Alexandre
Rasgulaeff, aguça a curiosidade do marido e das pessoas em volta, quem
estava em dúvida vai se aproximando: “Tá morto, tá morto, vem ver!”.
Adolescentes, tiazonas, velhos, pedreiros sujos de tinta e moçoilas com
roupinhas de ginástica se engalfinham na grade que separa a calçada do
início do matagal, caçando com olhares lá em baixo, no córrego,
vestígios do corpo, abraçado a um tronco de árvore, na margem do rio. Um
bebê de um ano, no colo do pai, e o cachorro nos braços da velha são os
únicos desinteressados no morto.
“Quero ver tudo bem de perto: daqui só saio depois do IML.”
“Deve ser outro craquento.”
“Não, parece boneco de Judas?”
“Vão ter que abrir uma clareira, ó.”
Quem tem celular aproveita para enquadrar o corpo em diferentes
ângulos. “Vou passar um filtro e já vou postar no Facebook”, comenta,
alegrinha, a dona de casa Marisa Fenaco, 40. “Isso não é meio tétrico?”,
pergunto.
Ela abre um sorrisão: “Claro que não. Todo mundo faz!”
Na cena do crime, Roberto Silva é saudado por repórteres,
cinegrafistas e bombeiros: “Grande Roberto!”, “Chegou o cara!”, “Roberto
Silva, o mito!”. Gente boa, retribui os tantos cumprimentos. Ouve
moradores, entrevista bombeiros e policiais: quase trinta minutos. Na
calçada, concede rápida entrevista sobre o descobrimento do corpo para
um locutor de voz empostada, que estende o celular e pede detalhes, ao
vivo, para alguma rádio da cidade.
“Uma mão lava a outra. Nesse meio, você tem que ser amigo de todo mundo.”
A analogia não é só recurso metafórico. No meio da confusão de
gente e polícia e curiosos e bombeiros, o próprio Roberto Silva surge,
fora do enfoque da câmera, empunhando o microfone de uma TV local e
entrevistando o velho que achou o corpo no córrego: cinco perguntas,
rapidinho. “Esse câmera, aí, é meu filho. Você já conhecia ele?”
Com 30 anos nas costas e onze de jornalismo, Robertinho, o
cinegrafista, é igualmente gente fina – bom humor é, entre os Silvas, um
atavismo. Engraçado. O filho parece mais velho que o próprio pai.
Vampiro que se alimenta do sangue no submundo maringaense, Roberto Silva
assim mantém sua jovialidade? Tá explicado.
“Segundo a polícia, esse cadáver está aqui há, no máximo, 72
horas. Ainda não há informações se há marcas de violência ou perfurações
de faca ou tiro. O sujeito usava blusa. Isso pode indicar que ele
morreu à noite, já que, nas últimas 72 horas, as manhãs e as tardes
estavam quentes; e as noites, geladas.”
Roberto Silva termina de passar as informações por telefone
para a repórter de odiario.com. Última olhada no corpo, ao longe, e
arrisca a conclusão: “Aqui perto, há uns mil metros, tem um conhecido
ponto de drogas, bem num córrego, relativamente fundo. Esse corpo está
abraçado ao galho, parece que o cara tentou se salvar. Acho que veio de
lá. Até porque o córrego, no ponto onde estamos, é rasinho: ninguém, por
mais chapado que esteja, conseguiria se afogar. Pode ser assassinato.
Vamos ver o que o pessoal da polícia vai dizer.”
Entramos no carro. Hora de voltar à delegacia de polícia. No
meio do caminho, próximo ao Hospital Universitário, Roberto Silva
aponta: bem ali, há alguns anos, morava uma família riquíssima. Muita
briga, ódio, até que um adulto morreu sozinho. “Ninguém reclamou o
corpo. Só acharam meses depois. O cheiro era insuportável e restava
pouca coisa: os ratos tinham devorado o corpo inteiro. Uma cena
horrível.”
Acesso ao proibido
Na delegacia, Roberto Silva é de casa. Vai entrando em salas,
salinhas e saletas – para ele não valem as centenas de avisos em letras
garrafais: PROIBIDO: SOMENTE POLICIAIS. Cumprimenta delegados, moçoilas,
investigadores, distribui dois exemplares do Diário para alguém, dá
tapinhas nas costas do famoso sargento e conta suas tantas piadas. A
passos céleres, é até difícil acompanhá-lo, disparado lá na frente. Nos
corredores labirínticos, surge a carceragem. Epa, não foi aqui que, mês
passado, decapitaram um detento? O perfume de cafezinho e papelada,
esquecido nas saletas lá atrás, dá lugar a um forte cheiro de merda e
mijo. No setor de triagem, apenas três das cinco celas têm banheiros.
Lamentos do cárcere
“Cadeia é desumano. Não tô conseguindo nem comer, cara, porque
tem um cocozão aqui na cela”, reclama o preso lá de dentro. Roberto
Silva chega junto. Ouve a história do garoto: 23 anos, vendendo crack na
quebrada, arrependidíssmo. “Não faz mais isso, pô, cê tá acabando com a
sua vida”, aconselha o jornalista.
Da carceragem encardida tocamos para outro canto. Abrindo e
fechando portas, perambulando em corredores e bebedouros – ai, que
saudades das minhas musas maringaenses! -, Roberto Silva entra e sai de
salas que abrem espaço para outras salas menores, e de repente é como
estar perambulando nos corredores claustrofóbicos e infinitos do
“Processo”, do Kafka.
“Tem alguma coisa interessante por aí?”, ele vai perguntando, em cada sala, insaciável colecionador de nãos.
Empunhando o monte de BOs, Roberto Silva vasculha possíveis
matérias. Estelionatos, ameaças, golpe de falso prêmio, gente que se
lasca vendendo moto e não faz a transferência do veículo, alguém reclama
do carro riscado nalguma rua da cidade e outro assume não pagar pensão e
vai até a delegacia registrar a ameaça jurada pela sogra.
Depois de meter seu carro numa estrada rural, num canto da zona
norte, e encontrar um lamaçal à beça pela frente, o revoltado motorista
maringaense registrou um BO porque tinha muito barro - quem diria?! -
na estrada rural. Depois da noitada regada a cachaça e outros pileques,
um bêbado surgiu na polícia para registrar o grandessíssimo roubo de R$
2. Segundo o depoimento da vítima, um desconhecido lhe afanou a
dinheirança, pegando-o desprevenido em sua boemia.
“O bêbado, que teve seus R$ 2 roubados, gastou R$ 6 para se
locomover de ônibus até a 9ª SDP, acredita?! Tá vendo que loucura é
isso? Olha esse, ó. A mulher agrediu o marido verbal e fisicamente e
ainda quebrou o para-brisa do carro dele. Quer outro? Uma mulher diz
estar sendo caluniada e jura que as fotos nuas circulando no WhatsApp
não são dela, diferentemente do que tão comentando. Agora, a polícia vai
acionar escrivão, cartorário, promotor e mais um monte de gente pra
investigar essa besteira do celular, ver quem postou, primeiro, a tal
foto e quem tá caluniando a moça. Esses casinhos, aí, besteiras de
internet, custam cada um, cerca de R$ 3 mil para o contribuinte”, diz.
Nessa hora, Roberto Silva recebe de alguém um bolo de páginas:
penca de BO’s de desaparecimentos. Num banco da delegacia, ele vai
separando os perfis que se aproximam do morto encontrado no córrego e
passa a ligar para as famílias. Sozinho, correndo contra o tempo, à caça
da identificação do corpo.
“Tenho uma história boa pra você”, avisa um policial, chegando
junto, dando risada.“Dia desses, veio uma japonesinha de uns sessenta e
poucos anos, já velhinha, acima de qualquer suspeita, sabe? Registrou um
BO. Ela chifrava o marido com um garotão de vinte e poucos anos, e o
marido descobriu. Com a traição, o marido nem se importou. O problema é
que ele descobriu, também, que a velha tinha dado R$ 20 mil pro
Ricardão. Revoltado, o marido desceu a mão na esposa e, agora, vai
responder pelo crime, enquadrado na Lei Maria da Penha”, relata o
policial, aos risos.
Depois de três ou quatro ligações, ele ainda não conseguiu
identificar o sujeito. Embora pareça alheio à conversa, absorto na
investigação, Roberto Silva dá uma boa risada e emenda: “Se você for um
corno, então, que seja um corno manso!”. Fica a lição.
Abandonando
os BO’s, corremos por outros departamentos. “Tem algum furo pra dar?”,
pergunta Roberto Silva. Mais risadas de figurões – não é aquele sargento
famoso do YouTube? Passamos pelas saletas de interrogatório. Olhares
vigilantes, armas à vista, molecões ainda imberbes, com pés e mãos
algemados, respondendo por assassinatos, tráfico de drogas e o diabo.
No corredor, encontramos Jota Junior, repórter de TV, de voz
empostada e cabelo penteadinho. “O Roberto tem um jeito especial: ele
conversa com o criminoso como se conhecesse o sujeito há uns 300 anos.
E, claro, tem sua malandragem. Ele chega assim: ‘Ô, fulano, sei que você
acariciou a criança, passou a mão nela, estuprou mesmo, e só depois foi
estuprar a mãe’. Daí o suspeito responde, como se conversasse com um
amigo: ‘Peraí, a criança não! Só estuprei a velha!’”, comenta.
“O Roberto é do tempo em que não tinha celular nem internet.
Então, o jornalista tinha a informação, um dia antes, por exemplo, que
um grupo de Sem Terra iria invadir, no dia seguinte, no horário tal,
alguma fazenda. O Roberto tinha que ir pra essa fazenda e fazer a
matéria. E se não tivesse a tal invasão? E se fosse trote? Ele tinha que
arranjar outra pauta, em cima da hora, para não voltar de mãos vazias
pro Diário. Sabe o que ele é? Um gênio”, avalia.
Gente fina, o repórter é mais um dos tantos alunos de Roberto
Silva. “Ele é uma escola. Agora há pouco, no caso do corpo no córrego.
Não é só o corpo que importa. O velho que achou o corpo, sabe? Quando
bati o olho, vi que o velho estava com algumas folhas na cabeça e a
calça suja de barro. Então, perguntei pro velho se ele desceu até o
córrego pra ver o corpo de perto. E o velho comentou que viu, sim, mas
por acaso. Todo o dia, não lembro há quantos anos, esse velho vai pra
beira do córrego regar a plantinha que ele tem ali na margem. Mesmo com a
chuvarada que deu ontem, olha só!, ele estava lá, para regar a tal
plantinha. Com esses detalhes, consegui humanizar uma história que,
inicialmente, era só mais um corpo descoberto. No final das contas,
mostrei um pouco daquela região e do cotidiano de seus moradores. Quem
me ensinou tudo isso foi ele .”
Quando me dou conta, Roberto Silva já está em outra sala,
tomando notas de um caso de estelionato e de uma vistoria que será feita
não sei por quem, na carceragem. Sigo seus passos, vamos saindo. Muitas
armas, risadas, alguém notifica o roubo de um vídeo game. Na frente da
delegacia, quase cinco da tarde, os primeiros minutos em que Roberto
Silva está, finalmente, um pouco menos acelerado. “Viu que correria? Tô o
dia inteiro querendo mijar, e nem tive tempo”, revela, rindo.
E o banheiro espera mais um pouco. O trabalho ainda não acabou.
A escrita, aliás, nem começou. Cinco e quinze da tarde, chegamos ao
jornal. Roberto Silva invade a Redação e vai comentando, em voz alta, no
léxico da juventude, todo os detalhes do morto, até o momento sem
indícios de assassinato, além do caso do estelionatário e umas outras
ideias que, se mexer bem, podem virar tantas matérias. O papo com o
editor-chefe, no meio da Redação, dura menos de cinco minutos. Antes de
seguir para o computador, Roberto Silva dá um berro: “E vocês não
conversem comigo nos próximos trinta minutos, hein!”
Furiosos,
seus dedos arquitetam histórias, personagens, detalhes, com uma rapidez
impressionante. Quieto e compenetrado, desafiando o tempo. Encaro
Roberto Silva, novamente, pela última vez. Ele sabe que tenho um livro
de 223 páginas sobre suas histórias. Amanhã de manhã, quantos leitores
não vão ler e tresler as linhas do seu corpo?
Ainda na Redação, me dou conta de que talvez - assim como
aconteceu com o Machadinho -, só depois de quatro décadas de sua morte a
posteridade consiga traçar, de maneira consideravelmente satisfatória, o
perfil humano desse sujeito cheio de piadas minimalistas e dedos ágeis,
obcecado pelo processo de investigação e pela escrita: o gênio
multiplicado que é o mito Roberto Silva.
Publicado no Diário (5/7/2015)
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