Ademir
Demarchi está confortavelmente sentado numa das mesas do Divina Dose.
Quase não o reconheço: protegido pelo frio, refugiado sob uma dessas
toquinhas bolivianas, preparadas em lã azulíssima. Observo-o de longe,
concentrado em anotações: quieto, escutando anonimamente as histórias
dos clientes em volta, rabiscando frases e expressões numa caderneta.
Cuidado, você, ao confessar teus segredos no bar: escritores podem
surrupiar todos teus detalhes. Encho o copo de Serra Malte geladíssima e
já vamos engatando assunto. Milan Kundera & Mia Couto. Geraldo
Vandré & Woody Allen. Michel Houellebecq & Paolo Sorrentino –
essas duplas, sim, você encara sem medo. "Vir pra cá me deixa um tanto
melancólico", desabafa o grande poeta e cronista do Diário, em passagem
pela cidade para visitar alguns familiares.
Eu também ficaria
extremamente melancólico, se estivesse na pele do Demarchi. Não deve ser
fácil abandonar, ainda que por uns dias, a luxuosa cobertura em Santos,
com vista de frente para o mar, e regressar às remotas ruas do passado.
Para alguns autores, a cidade - ou seu distanciamento dela - é
extremamente importante. Impossível ler Kafka sem refletir sobre sua
relação conturbada com Praga. Ninguém fica imune a São Luís versada no
"Poema Sujo", do Ferreira Gullar, nem a Combray mitificada por Proust.
Em busca da Maringá perdida, pergunto ao cronista sobre suas memórias,
caçando resquícios de 1975 a 1985, período em que Demarchi viveu por
aqui.
"Infelizmente, algumas coisas não resistiram ao tempo.
Sinto falta de uma portinha, perto da banca do Massao, que vendia uma
porpeta frita muito saborosa, feita lá mesmo. Sinto falta do Cine
Maringá, Cine Plaza, Cine Horizonte, Cine Pedutti. Da Biblioteca
Pública. Do antigo calçadão rústico da praça da Prefeitura, que foi
azulejado por um arquiteto desses aí que azulejam paisagem", lembra,
saudosista, encarando o copo à frente, criando casas, casebres,
casarões, ruas, avenidas e uma imensa Catedral a partir da espuma da
cerveja, que ele faz questão de entornar, sedento, num só gole.
Sempre
atencioso, Seu Valter pousa outra Serra Malte e vamos molhando o verbo
na mesa 33. Comento com Demarchi meu sonho recente: eu estava morto,
todo de branco, e bebia com vários amigos (ele, inclusive) naquele
boteco. Se há um único paraíso em Maringá, esse lugar é o Divina Dose.
Crítico
severo de bares, Demarchi concorda. "Não me lembro de bares que me
marcaram na minha Maringá de antigamente. Havia uns pontos de encontro,
os bares na Zona 7, insossos, e a Cantina da UEM até o fim das aulas. Na
juventude, a diversão era improvisada nas festinhas de bairro: uma lona
no quintal, muita música de toca-discos embaixo e rock alternado com
música melosa pra se grudar com as moças. Bebida barata, vida simples",
comenta, com um sorriso sacana.
"Como eram as belas maringaenses da sua época? Existiam tantas loiras quanto nos dias de hoje?", vou sondando.
"Não
é tão diferente de hoje, está aí você casadão em plena juventude se
metendo à besta. Eram todas casadoiras, aliás, como todas as mulheres,
românticas incuráveis nessa Maringá, a sentimental. Muitas, muitas
caipiras. Me apaixonei umas vezes por minhas fantasias, tive uma
primeira namorada vestida de pétalas de rosas e me evadi em busca do
Santo Graal que ressoava na distante voz de uma sereia."
"O amor é lindo", digo, tirando uma gargalhada do poeta, que acaba de publicar um livro com esse mesmo título irônico.
"No
dia em que impichmaram a Dilma, acho-a uma chata, mas sua cassação foi
uma encenação feita por bandidos, pois bem, o que dizer quando nesse dia
marcante para a história do País abri um jornal e li duas manchetes:
'Homem ateia fogo em carro onde ex estava com namorado em Piracicaba' e
'Separação de William Bonner e Fátima Bernardes causa comoção na
internet'. A notícia mais importante era a liquidação da empresa Bonner
& Bernardes Ltda. O amor é lindo", sacaneia o poeta, esvaziando mais
uma Serra Malte.
A Maringá de hoje tem Festa Literária
Internacional. Tem festival em que músicos de outros Estados executam
Shostakovich, Brahms, Chopin. Tem exibições de filmes alternativos. Tem
festival de jazz com big bands. Tudo isso com entrada grátis.
"Minha
Maringá não teve nada disso. Minha época exigia atitude, fazer jornais,
fazer teatro e criamos um cineclube, que reunia meia dúzia, pois os
cinemas não davam o que queríamos de cinema europeu, japonês, russo,
italiano, onde pulsava a vida longe do cinema norte-americano."
"Difícil acesso a livros, filmes, discos... Como você sobreviveu àquela infernal Maringá?"
"O
jeito era viajar atrás da cultura. Fiz muitas viagens, fui parar até
num encontro de cineclubes numa cidade italiana perto de Vitória, no
Espírito Santo, dias de viagem de ônibus, onde me embriaguei com vinho
de jabuticaba, assistindo um gay interpretar ao piano e cantando Lisa
Minelli e seu 'Life is a Cabaret'..."
"!?"
"...não me
interessei pelo ator-poeta e seus olhares melífluos e conheci uma
húngara que me introduziu nos mistérios gozozos diluindo refinadamente a
embriaguez do vinho de jabuticaba feito pelos monges daquele monastério
em que estávamos hospedados e que depois me acompanhou até São Paulo,
onde nos hospedamos em um hotelzinho perto do Teatro Municipal,
passeamos pelo Anhangabaú e aprendi a amar a cultura húngara e suas
proximidades a um ponto em que tenho praticamente todos os autores
publicados no Brasil, a começar por um 'Tradutor Cleptomaníaco' e acabar
com 'Antologia da Literatura Ucraniana', de Wira Selanski, uma raridade
que teve adaptação poética sabe de quem?"
"?"
"Nossa Helena Kolody."
"!"
"Como você pode ver, Maringá, essa sentimental, me fez ir longe para estar sempre de volta."
Demarchi
pede umas cachaças para rebatermos a cerveja geladíssima. Dona Ione,
sempre gentil, ajeita os copinhos translúcidos de onde emanam os doces
perfumes dos porres homéricos.
"A frase do Dickens 'aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos' se encaixa bem na sua Maringá?"
"Perfeitamente.
O lugar da juventude é esse, o melhor e o pior ao mesmo tempo. Se se
consegue um blend perfeito disso, tira-se um ótimo vinho para a
velhice", aconselha.
Nosso diálogo é degolado por um jovem
moreno. Um metro e sessenta, bicicleta estropiada, celular hipermoderno,
empilhando três metros de tapetes coloridos.
"Vamo comprá tapete hoje?", oferece, gentilmente, Johnny Tapete.
Culpa
da crise, recusamos os adornos de chão – na tua casa, os dezoito
tapetes vendidos noutras noites pelo mesmo Johnny Tapete, quando você
estava ligeiramente alcoolizado, já não lotam teus armários? Figura
folclórica da noite maringaense, ele insiste.
"Não é um tapete
comum: é um tapete voador", garante, erguendo na altura do rosto uma das
opções de tapetes e deixando cair, de uma vez, rumo ao chão.
Propaganda é mesmo a alma do negócio: mais três tapetes, de Johnny Tapete, para tua vasta coleção.
"Tua Maringá é muito melhor que a minha. Como pude viver, nesses 56 anos, sem conhecer Johnny Tapete?", questiona-se Demarchi.
Seu
Valter traz nova rodada de cachaça e outra Serra Malte com a noitada
avançando é ali que eu pergunto sobre a meretriz septuagenária Tia Maria
"sou virgem disso" & a famigerada Mansão de Pedra "um mito para
mim" e como foi mesmo aquele dia em que ele assistiu Lula discursar na
carroceria de um caminhão em frente à Igreja São José eu estava na
organização mas não me lembro das conversas que tenha tido e das
relações de Kurosawa & Trotski ou de como Beckett & Peppino di
Capri se encontram e se afastam não sei os motivos agora que nos levaram
até o Gógol talvez sejam as descrições do "Almas Mortas" mas não posso
afirmar com veemência daí Demarchi tira o celular do bolso aponto para
ele rindo da touca chilena quer dizer boliviana tá muito estranho mesmo
cara e dou risada quando ele lê um trecho bom à beça do começo de um
conto? romance? nunca ouvi falar desse escritor caramba me envie amanhã
porque eu com certeza claro que mando pode deixar vou esquecer sem falar
na ressaca esse escritor é ótimo o amor Gaioto é um dos maiores FÓUM
FÓUM males contemporâneos eficientemente incorporado FÓUM FÓUM como um
dos mais profícuos meios de alimentação do capitalismo FÓUM FÓUM FÓUM
FÓUM um caminhão de bombeiro cruza a frente do Divina Dose com luzes
faiscantes será incêndio em prédio? na minha casa? gato no alto da
árvore? criança engasgada com comida? e bebericamos a terceira rodada de
cachaça a sociedade das formas econômicas que moldam os afetos e os
transformam em objeto o casamento é uma encenação caríssima feita pra
alegrar mulher e damos risada e brindamos porque é um teatro ele diz
erguendo o copo é uma grande produção é uma relação de contrato
empresarial e Seu Valter atende meu pedido trazendo conta e saideira
quando pagamos no crédito com Demarchi declamando um dos seus novos
poemas "O Amor"
ar aprisionado num vidro
com tampa de pedra
em forma de pássaro
Publicada em 4/8/2016
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