segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Na busca de um bom boteco, em busca de Maringá perdida

Ademir Demarchi está confortavelmente sentado numa das mesas do Divina Dose. Quase não o reconheço: protegido pelo frio, refugiado sob uma dessas toquinhas bolivianas, preparadas em lã azulíssima. Observo-o de longe, concentrado em anotações: quieto, escutando anonimamente as histórias dos clientes em volta, rabiscando frases e expressões numa caderneta. Cuidado, você, ao confessar teus segredos no bar: escritores podem surrupiar todos teus detalhes. Encho o copo de Serra Malte geladíssima e já vamos engatando assunto. Milan Kundera & Mia Couto. Geraldo Vandré & Woody Allen. Michel Houellebecq & Paolo Sorrentino – essas duplas, sim, você encara sem medo. "Vir pra cá me deixa um tanto melancólico", desabafa o grande poeta e cronista do Diário, em passagem pela cidade para visitar alguns familiares.

Eu também ficaria extremamente melancólico, se estivesse na pele do Demarchi. Não deve ser fácil abandonar, ainda que por uns dias, a luxuosa cobertura em Santos, com vista de frente para o mar, e regressar às remotas ruas do passado. Para alguns autores, a cidade - ou seu distanciamento dela - é extremamente importante. Impossível ler Kafka sem refletir sobre sua relação conturbada com Praga. Ninguém fica imune a São Luís versada no "Poema Sujo", do Ferreira Gullar, nem a Combray mitificada por Proust. Em busca da Maringá perdida, pergunto ao cronista sobre suas memórias, caçando resquícios de 1975 a 1985, período em que Demarchi viveu por aqui.

"Infelizmente, algumas coisas não resistiram ao tempo. Sinto falta de uma portinha, perto da banca do Massao, que vendia uma porpeta frita muito saborosa, feita lá mesmo. Sinto falta do Cine Maringá, Cine Plaza, Cine Horizonte, Cine Pedutti. Da Biblioteca Pública. Do antigo calçadão rústico da praça da Prefeitura, que foi azulejado por um arquiteto desses aí que azulejam paisagem", lembra, saudosista, encarando o copo à frente, criando casas, casebres, casarões, ruas, avenidas e uma imensa Catedral a partir da espuma da cerveja, que ele faz questão de entornar, sedento, num só gole.

Sempre atencioso, Seu Valter pousa outra Serra Malte e vamos molhando o verbo na mesa 33. Comento com Demarchi meu sonho recente: eu estava morto, todo de branco, e bebia com vários amigos (ele, inclusive) naquele boteco. Se há um único paraíso em Maringá, esse lugar é o Divina Dose.

Crítico severo de bares, Demarchi concorda. "Não me lembro de bares que me marcaram na minha Maringá de antigamente. Havia uns pontos de encontro, os bares na Zona 7, insossos, e a Cantina da UEM até o fim das aulas. Na juventude, a diversão era improvisada nas festinhas de bairro: uma lona no quintal, muita música de toca-discos embaixo e rock alternado com música melosa pra se grudar com as moças. Bebida barata, vida simples", comenta, com um sorriso sacana.

"Como eram as belas maringaenses da sua época? Existiam tantas loiras quanto nos dias de hoje?", vou sondando.

"Não é tão diferente de hoje, está aí você casadão em plena juventude se metendo à besta. Eram todas casadoiras, aliás, como todas as mulheres, românticas incuráveis nessa Maringá, a sentimental. Muitas, muitas caipiras. Me apaixonei umas vezes por minhas fantasias, tive uma primeira namorada vestida de pétalas de rosas e me evadi em busca do Santo Graal que ressoava na distante voz de uma sereia."

"O amor é lindo", digo, tirando uma gargalhada do poeta, que acaba de publicar um livro com esse mesmo título irônico.

"No dia em que impichmaram a Dilma, acho-a uma chata, mas sua cassação foi uma encenação feita por bandidos, pois bem, o que dizer quando nesse dia marcante para a história do País abri um jornal e li duas manchetes: 'Homem ateia fogo em carro onde ex estava com namorado em Piracicaba' e 'Separação de William Bonner e Fátima Bernardes causa comoção na internet'. A notícia mais importante era a liquidação da empresa Bonner & Bernardes Ltda. O amor é lindo", sacaneia o poeta, esvaziando mais uma Serra Malte.

A Maringá de hoje tem Festa Literária Internacional. Tem festival em que músicos de outros Estados executam Shostakovich, Brahms, Chopin. Tem exibições de filmes alternativos. Tem festival de jazz com big bands. Tudo isso com entrada grátis.

"Minha Maringá não teve nada disso. Minha época exigia atitude, fazer jornais, fazer teatro e criamos um cineclube, que reunia meia dúzia, pois os cinemas não davam o que queríamos de cinema europeu, japonês, russo, italiano, onde pulsava a vida longe do cinema norte-americano."

"Difícil acesso a livros, filmes, discos... Como você sobreviveu àquela infernal Maringá?"

"O jeito era viajar atrás da cultura. Fiz muitas viagens, fui parar até num encontro de cineclubes numa cidade italiana perto de Vitória, no Espírito Santo, dias de viagem de ônibus, onde me embriaguei com vinho de jabuticaba, assistindo um gay interpretar ao piano e cantando Lisa Minelli e seu 'Life is a Cabaret'..."

"!?"

"...não me interessei pelo ator-poeta e seus olhares melífluos e conheci uma húngara que me introduziu nos mistérios gozozos diluindo refinadamente a embriaguez do vinho de jabuticaba feito pelos monges daquele monastério em que estávamos hospedados e que depois me acompanhou até São Paulo, onde nos hospedamos em um hotelzinho perto do Teatro Municipal, passeamos pelo Anhangabaú e aprendi a amar a cultura húngara e suas proximidades a um ponto em que tenho praticamente todos os autores publicados no Brasil, a começar por um 'Tradutor Cleptomaníaco' e acabar com 'Antologia da Literatura Ucraniana', de Wira Selanski, uma raridade que teve adaptação poética sabe de quem?"

"?"

"Nossa Helena Kolody."

"!"

"Como você pode ver, Maringá, essa sentimental, me fez ir longe para estar sempre de volta."

Demarchi pede umas cachaças para rebatermos a cerveja geladíssima. Dona Ione, sempre gentil, ajeita os copinhos translúcidos de onde emanam os doces perfumes dos porres homéricos.

"A frase do Dickens 'aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos' se encaixa bem na sua Maringá?"

"Perfeitamente. O lugar da juventude é esse, o melhor e o pior ao mesmo tempo. Se se consegue um blend perfeito disso, tira-se um ótimo vinho para a velhice", aconselha.

Nosso diálogo é degolado por um jovem moreno. Um metro e sessenta, bicicleta estropiada, celular hipermoderno, empilhando três metros de tapetes coloridos.

"Vamo comprá tapete hoje?", oferece, gentilmente, Johnny Tapete.

Culpa da crise, recusamos os adornos de chão – na tua casa, os dezoito tapetes vendidos noutras noites pelo mesmo Johnny Tapete, quando você estava ligeiramente alcoolizado, já não lotam teus armários? Figura folclórica da noite maringaense, ele insiste.

"Não é um tapete comum: é um tapete voador", garante, erguendo na altura do rosto uma das opções de tapetes e deixando cair, de uma vez, rumo ao chão.

Propaganda é mesmo a alma do negócio: mais três tapetes, de Johnny Tapete, para tua vasta coleção.

"Tua Maringá é muito melhor que a minha. Como pude viver, nesses 56 anos, sem conhecer Johnny Tapete?", questiona-se Demarchi.

Seu Valter traz nova rodada de cachaça e outra Serra Malte com a noitada avançando é ali que eu pergunto sobre a meretriz septuagenária Tia Maria "sou virgem disso" & a famigerada Mansão de Pedra "um mito para mim" e como foi mesmo aquele dia em que ele assistiu Lula discursar na carroceria de um caminhão em frente à Igreja São José eu estava na organização mas não me lembro das conversas que tenha tido e das relações de Kurosawa & Trotski ou de como Beckett & Peppino di Capri se encontram e se afastam não sei os motivos agora que nos levaram até o Gógol talvez sejam as descrições do "Almas Mortas" mas não posso afirmar com veemência daí Demarchi tira o celular do bolso aponto para ele rindo da touca chilena quer dizer boliviana tá muito estranho mesmo cara e dou risada quando ele lê um trecho bom à beça do começo de um conto? romance? nunca ouvi falar desse escritor caramba me envie amanhã porque eu com certeza claro que mando pode deixar vou esquecer sem falar na ressaca esse escritor é ótimo o amor Gaioto é um dos maiores FÓUM FÓUM males contemporâneos eficientemente incorporado FÓUM FÓUM como um dos mais profícuos meios de alimentação do capitalismo FÓUM FÓUM FÓUM FÓUM um caminhão de bombeiro cruza a frente do Divina Dose com luzes faiscantes será incêndio em prédio? na minha casa? gato no alto da árvore? criança engasgada com comida? e bebericamos a terceira rodada de cachaça a sociedade das formas econômicas que moldam os afetos e os transformam em objeto o casamento é uma encenação caríssima feita pra alegrar mulher e damos risada e brindamos porque é um teatro ele diz erguendo o copo é uma grande produção é uma relação de contrato empresarial e Seu Valter atende meu pedido trazendo conta e saideira quando pagamos no crédito com Demarchi declamando um dos seus novos poemas "O Amor"

ar aprisionado num vidro
com tampa de pedra
em forma de pássaro

Publicada em 4/8/2016

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