terça-feira, 16 de agosto de 2016

Tome muito cuidado ao contemplar o pôr do sol

Os dramas urbanos dão vida às cidades. Enchem as esquinas de dúvidas, refletem o passado no ponto de ônibus, planejam crimes e pecados enquanto desviam de motoqueiros imprudentes, disparando rajadas de palavrões. Nos semblantes desarmônicos, um pouco de tudo. Repare em cada pedestre. Ciúmes. Preguiça. Inveja. Desejo. Tédio. Gula. Paixão. Rancor. Frustração. Medo. Orgulho. Preconceito. Ódio. Desespero. Pânico. As calçadas são um safári sentimental. Você, quando caminha, também ouve os sussurros das ruas? Confissões, desabafos e alguns detalhes revelam, aos poucos, os enredos das tuas cidades.

"Mãezinha, a genti não pódi complá: a gente não tem dinhêlu."
"A vizinha até ligou pro síndico. Toda semana, me inferniza. Ela é sabe o quê? Uma mal..."
"Comida. Não aguento mais lanche: hoje, quero feijoada completa."
"...caráter. Que culpa eu tenho se a vizinha do andar de cima fica andando de salto?!"
"Um beijão pra senhora, Dona Olga, e um abração pro Seu Sato!"
FÓÓÓÓÓÓÓÓM – a buzinada de um caminhão esmaga a fala alheia."
"Só se fala nisso, amiga: no casamento da socialite Camila Costa, em outubro. Sonho da minha vida é participar da alta sociedade maringaense."
"Reboco, ó: igual tua casa, tá vendo?!"
"Praia?! Cê tá louca. Com que dinheiro, amor?!"
"O plano de saúde tá impossível. Tô tentando operar a mãe no plano de alguém."
"Olha só. Que bonito. Todo mundo trabalhando!"
"Vô é terminá com aquela safada. Sei que saiu ontem com o Claudinho, acredita?! O Claudinho!"

Em cinco minutos, você testemunha amores e ódios de atores anônimos no trecho interditado da BR-376. O palco é a passarela recém-construída em Sarandi, num dos principais acessos à cidade, ligando a Avenida Antonio Volpato à Ademar Bornia. No processo de construção de dois viadutos, o trânsito foi desviado pelas marginais da rodovia. Diariamente, cerca de 30 mil veículos cruzam esse trecho sarandiense, entre buzinadas e xingamentos, num louvável exercício de paciência. A caminho de casa, pedestres exaustos fazem uma pausa. Dezenas deles. Rostos calados, ardidos, sofridos e suados – não são os mesmos rostos da "Manifestação", do grande Antonio Berni? Debruçados sobre a passarela, mergulham fundo na solidão e refletem segredos em silêncio - cogitam, eles, desistir da existência?

"Nunca! Tava aqui pensando no futuro", explica o ambulante Moacir Souza, 28, assistindo as três dezenas de operários, lá embaixo, manchando botas, calças e camisetas com respingos de cimento e cal. Antes de vender água (R$ 2), suco (R$ 2) e refrigerantes (R$ 2,50) em cima de uma bicicleta, aproveitando o trânsito da BR-376, Moacir passava manhãs e tardes construindo residências alheias. "Ganhava diária de R$ 80. Chapando parede, fazendo requadro: a coisa mais difícil que tem. Fiz casas e até um prédio em Maringá, na Vila Operária. Hoje, no trânsito, chego a ganhar R$ 70. Mas quero fazer um curso técnico e arranjar trabalho decente. A rua é incerta: num dia dá grana, no outro não dá nada. Há um ano, saí de Dourados, no Mato Grosso do Sul, com mulher e filho porque lá não tinha emprego. Mas, aqui, a situação também tá difícil. Se não melhorar, o jeito é voltar pra Dourados e morar junto com a minha mãe", comenta, escavando a memória, enquanto máquinas cavocam a terra vermelha.

A rua é incerta. O trabalho é incerto. A vida é incerta. Única coisa só é certa: ao lado do Moacir, outros rostos calados dão seus saltos introspectivos e parecem encontrar, ali, melhores soluções às tantas divagações. "Ver essa trabalheira faz bem pra cabeça da gente", garante um. "Ajuda a relaxar depois do trabalho", comenta outro. "É até bonito, não é, não?", avalia o terceiro.

Suor azedo. Terra seca. Pipoca doce. Perfume picante Jequiti. São vários, os aromas da passarela. Sete tiozões embasbacados não com as moças do Leblon, não com a maré de Copacabana, não com a vista privilegiada do Pão de Açúcar numa das mesas do Porcão, mas, sim, com a construção de Sarandi.

Churrasco de um homem só

Do outro lado da passarela, sinto de longe o cheiro de espetinhos. Na calçada, ao ar livre. Churrasco de um homem só. Onde os amigões? Onde a lambada e o rala coxa? Onde a música em alto e bom som? Quase seis da tarde, a fome bate forte e atravesso em direção aos acepipes na brasa. A dois passos do churrasco, sou tomado pelo fedor de porcos obesos e fezes amargas – um caminhão de suínos despeja aromas ácidos nas ruelas de Sarandi. Guiado, possivelmente, pelo porqueiro Eumeu, o caminhão levanta a poeira vermelha que ameaça teu chapéu e espirra cinzas e poeiras sobre os espetinhos de carne e frango, protegidos por uma tampa de metal. A fome - ela também incerta - passa rapidinho.

"A crise tirou 30% do meu movimento. A construção daí da frente, 40%", lamenta o empresário José Roberto, 55. Proprietário há três anos do restaurante Cabana, que abre diariamente para almoços, José teve que virar churrasqueiro para diminuir o prejuízo. Durante a semana, das 16h às 20h, ele oferece carne e frango aos motoristas, na calçada do restaurante.

"Vendo espetinho bem baratinho, a R$ 3. Mesmo assim, o povão não tem dinheiro pra comprar", lamenta o churrasqueiro da Cabana. Engraçado, esse nome. Cabana, Cabana... Não soa familiar? "Não era aqui, a única casa noturna de Sarandi?" "Exatamente: Cabana 40 Graus. Fechou faz tempão", esclarece o sujeito. A tal Cabana: reduto infernal de funkeiros, cantores sertânicos e outras pragas sonoras. "Não mataram alguém numa dessas noites de funk dentro da Cabana?", pergunto.

"Teve isso, sim. Realmente. Mas foi fora da casa noturna, que fique claro." Com a morte, a única casa noturna da cidade fechou as portas. Desde então, a noite em Sarandi não tem mais teto.

"O pessoal compra espetinho para apreciar a vista da passarela?"

"Nem tanto. Quem compra são os motoristas. Mas o pessoal passa o dia todo aí na passarela. Olhando o trabalho, passando o tempo. Incrível, né? Virou ponto turístico da cidade."

"O que buscam, os tantos turistas?"

"Parece que é bonito ver máquina cavocando. Dizem até que relaxa."

"Tipo pescaria?"

"Nem se compara! Pescar é muito relaxante. Eu mesmo pesco uma vez por ano no Pantanal. Os amigos vão junto. A gente pega Dourado, Piapara, Pintado, um pouco de tudo. E volta sempre mais jovem, com força pra trabalhar melhor."

Ruivinha hippie

Hordas de jovens, tiazonas, tiozões e velhos cruzam o novo ponto turístico. No meio da passarela, empunhando caneta e bloco de notas, você sinaliza com três braços à ruivinha hippie de fone nos ouvidos. Claro que ela não compreende o que você diz. Simpática, vai despindo os fones, e aceita a pausa para ouvir teu verbo.

"Todo dia venho notando esse pessoal parando, mas eu mesma nunca parei pra olhar o que tem lá pra baixo", comenta a ruivinha.
Camisa de deus indiano, pulseiras hippies, colar de filtro dos sonhos.
"A gente acaba não percebendo os detalhes. Das pessoas trabalhando. Das naturezas. Esse pôr do sol..." Setenta tons vermelhos misturados ao doce perfume da ruivinha.
"...não é lindo?!"
O mestre Monet não seria mais impactante. De um lado ou de outro, nada de prédios para atrapalhar a obra-prima. Quatro velhos embasbacados no Louvre logo seguem o rumo, deixando, para você e sua ruivinha, o bendito espaço na passarela.

"Ei, moço, só não olhe demais para o sol, tá?"
"?"
A última máquina vai resfolegando: fim do expediente dos operários.
"Dizem que o sol tem poderes mágicos: se você olhar demais, acaba ficando preso no lugar dele, e ele no seu."
"Não creio nessas crendices."
É doce, o místico riso de uma ruivinha.
"O que há de bom pra fazer em Sarandi?"
"Nada...."
Olhos melancólicos da mais profunda tristeza.
"...não tem arte..." "!"
"...não tem um bar de rock..."
"!!"
"...nem balada que toque música eletrônica...."
Não seria, esse, único lado positivo?
"...Sarandi é uma cidade maravilhosa, se você quer morrer de tédio", ela diz.
"Maringá é uma cidade maravilhosa, se você quer ser esfaqueada no meio da rua", devolvo.

Ela estende sorrisos, evitando encarar o sol – qual dos dois, mais vermelhinho? O vermelho do sol soa um tanto assustador. Há algo de infernal e sedutor no pôr do sol de Sarandi. Lembro as palavras da ruiva: tome cuidado com o sol. Encaro-o bem, quase sem medo: não parece enigmático nesse fim de tarde? Fixo os olhos sem piscar. Um tanto surpreso, vejo meu rosto na passarela, enxergo os detalhes daqui do alto: o chapéu preto, a camisa florida, o bloco de notas na mão. Faz calor demais aqui em cima. Nunca senti tanta febre nem cobicei tanta água. Lá embaixo, uma velha repreende o neto, que desiste de me olhar e protege a vista com as duas mãos. Quero correr, mas sinto o corpo pesado. Tento descer de uma vez, mas é impossível. A ruivinha hippie se despede e vai embora, caminhando em direção à Avenida Londrina. Lá embaixo, o corpo que me pertencia continua me encarando. Parece dizer algo, só que é impossível ouvir de tão longe. Será uma despedida? Tento gritar, mas, que diabos!, não há qualquer voz para gritar. Ele entra no carro e acelera feito louco. Espero que faça o que eu faria. Que siga para o jornal e escreva a crônica sobre o novo ponto turístico de Sarandi, a passarela que eu, agora, ilumino nos fins de tarde.

Publicado em O Diário (16/8/2016)

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