Os dramas urbanos dão vida às cidades. Enchem as esquinas de dúvidas,
refletem o passado no ponto de ônibus, planejam crimes e pecados
enquanto desviam de motoqueiros imprudentes, disparando rajadas de
palavrões. Nos semblantes desarmônicos, um pouco de tudo. Repare em cada
pedestre. Ciúmes. Preguiça. Inveja. Desejo. Tédio. Gula. Paixão.
Rancor. Frustração. Medo. Orgulho. Preconceito. Ódio. Desespero. Pânico.
As calçadas são um safári sentimental. Você, quando caminha, também
ouve os sussurros das ruas? Confissões, desabafos e alguns detalhes
revelam, aos poucos, os enredos das tuas cidades.
"Mãezinha, a
genti não pódi complá: a gente não tem dinhêlu."
"A vizinha até ligou
pro síndico. Toda semana, me inferniza. Ela é sabe o quê? Uma mal..."
"Comida. Não aguento mais lanche: hoje, quero feijoada completa."
"...caráter. Que culpa eu tenho se a vizinha do andar de cima fica
andando de salto?!"
"Um beijão pra senhora, Dona Olga, e um abração pro
Seu Sato!"
FÓÓÓÓÓÓÓÓM – a buzinada de um caminhão esmaga a fala alheia."
"Só
se fala nisso, amiga: no casamento da socialite Camila Costa, em
outubro. Sonho da minha vida é participar da alta sociedade
maringaense."
"Reboco, ó: igual tua casa, tá vendo?!"
"Praia?! Cê tá
louca. Com que dinheiro, amor?!"
"O plano de saúde tá impossível. Tô
tentando operar a mãe no plano de alguém."
"Olha só. Que bonito. Todo
mundo trabalhando!"
"Vô é terminá com aquela safada. Sei que saiu ontem
com o Claudinho, acredita?! O Claudinho!"
Em cinco minutos, você
testemunha amores e ódios de atores anônimos no trecho interditado da
BR-376. O palco é a passarela recém-construída em Sarandi, num dos
principais acessos à cidade, ligando a Avenida Antonio Volpato à Ademar
Bornia. No processo de construção de dois viadutos, o trânsito foi
desviado pelas marginais da rodovia. Diariamente, cerca de 30 mil
veículos cruzam esse trecho sarandiense, entre buzinadas e xingamentos,
num louvável exercício de paciência. A caminho de casa, pedestres
exaustos fazem uma pausa. Dezenas deles. Rostos calados, ardidos,
sofridos e suados – não são os mesmos rostos da "Manifestação", do
grande Antonio Berni? Debruçados sobre a passarela, mergulham fundo na
solidão e refletem segredos em silêncio - cogitam, eles, desistir da
existência?
"Nunca! Tava aqui pensando no futuro", explica o
ambulante Moacir Souza, 28, assistindo as três dezenas de operários, lá
embaixo, manchando botas, calças e camisetas com respingos de cimento e
cal. Antes de vender água (R$ 2), suco (R$ 2) e refrigerantes (R$ 2,50)
em cima de uma bicicleta, aproveitando o trânsito da BR-376, Moacir
passava manhãs e tardes construindo residências alheias. "Ganhava diária
de R$ 80. Chapando parede, fazendo requadro: a coisa mais difícil que
tem. Fiz casas e até um prédio em Maringá, na Vila Operária. Hoje, no
trânsito, chego a ganhar R$ 70. Mas quero fazer um curso técnico e
arranjar trabalho decente. A rua é incerta: num dia dá grana, no outro
não dá nada. Há um ano, saí de Dourados, no Mato Grosso do Sul, com
mulher e filho porque lá não tinha emprego. Mas, aqui, a situação também
tá difícil. Se não melhorar, o jeito é voltar pra Dourados e morar
junto com a minha mãe", comenta, escavando a memória, enquanto máquinas
cavocam a terra vermelha.
A rua é incerta. O trabalho é incerto. A
vida é incerta. Única coisa só é certa: ao lado do Moacir, outros
rostos calados dão seus saltos introspectivos e parecem encontrar, ali,
melhores soluções às tantas divagações. "Ver essa trabalheira faz bem
pra cabeça da gente", garante um. "Ajuda a relaxar depois do trabalho",
comenta outro. "É até bonito, não é, não?", avalia o terceiro.
Suor
azedo. Terra seca. Pipoca doce. Perfume picante Jequiti. São vários, os
aromas da passarela. Sete tiozões embasbacados não com as moças do
Leblon, não com a maré de Copacabana, não com a vista privilegiada do
Pão de Açúcar numa das mesas do Porcão, mas, sim, com a construção de
Sarandi.
Churrasco de um homem só
Do outro lado da passarela, sinto
de longe o cheiro de espetinhos. Na calçada, ao ar livre. Churrasco de
um homem só. Onde os amigões? Onde a lambada e o rala coxa? Onde a
música em alto e bom som? Quase seis da tarde, a fome bate forte e
atravesso em direção aos acepipes na brasa. A dois passos do churrasco,
sou tomado pelo fedor de porcos obesos e fezes amargas – um caminhão de
suínos despeja aromas ácidos nas ruelas de Sarandi. Guiado,
possivelmente, pelo porqueiro Eumeu, o caminhão levanta a poeira
vermelha que ameaça teu chapéu e espirra cinzas e poeiras sobre os
espetinhos de carne e frango, protegidos por uma tampa de metal. A fome -
ela também incerta - passa rapidinho.
"A crise tirou 30% do meu
movimento. A construção daí da frente, 40%", lamenta o empresário José
Roberto, 55. Proprietário há três anos do restaurante Cabana, que abre
diariamente para almoços, José teve que virar churrasqueiro para
diminuir o prejuízo. Durante a semana, das 16h às 20h, ele oferece carne
e frango aos motoristas, na calçada do restaurante.
"Vendo
espetinho bem baratinho, a R$ 3. Mesmo assim, o povão não tem dinheiro
pra comprar", lamenta o churrasqueiro da Cabana. Engraçado, esse nome.
Cabana, Cabana... Não soa familiar? "Não era aqui, a única casa noturna
de Sarandi?" "Exatamente: Cabana 40 Graus. Fechou faz tempão", esclarece
o sujeito. A tal Cabana: reduto infernal de funkeiros, cantores
sertânicos e outras pragas sonoras. "Não mataram alguém numa dessas
noites de funk dentro da Cabana?", pergunto.
"Teve isso, sim.
Realmente. Mas foi fora da casa noturna, que fique claro." Com a morte,
a única casa noturna da cidade fechou as portas. Desde então, a noite
em Sarandi não tem mais teto.
"O pessoal compra espetinho para apreciar a vista da passarela?"
"Nem
tanto. Quem compra são os motoristas. Mas o pessoal passa o dia todo aí
na passarela. Olhando o trabalho, passando o tempo. Incrível, né? Virou
ponto turístico da cidade."
"O que buscam, os tantos turistas?"
"Parece que é bonito ver máquina cavocando. Dizem até que relaxa."
"Tipo pescaria?"
"Nem
se compara! Pescar é muito relaxante. Eu mesmo pesco uma vez por ano no
Pantanal. Os amigos vão junto. A gente pega Dourado, Piapara, Pintado,
um pouco de tudo. E volta sempre mais jovem, com força pra trabalhar
melhor."
Ruivinha hippie
Hordas de jovens, tiazonas, tiozões e
velhos cruzam o novo ponto turístico. No meio da passarela, empunhando
caneta e bloco de notas, você sinaliza com três braços à ruivinha hippie
de fone nos ouvidos. Claro que ela não compreende o que você diz.
Simpática, vai despindo os fones, e aceita a pausa para ouvir teu verbo.
"Todo
dia venho notando esse pessoal parando, mas eu mesma nunca parei pra
olhar o que tem lá pra baixo", comenta a ruivinha.
Camisa de deus
indiano, pulseiras hippies, colar de filtro dos sonhos.
"A gente acaba
não percebendo os detalhes. Das pessoas trabalhando. Das naturezas. Esse
pôr do sol..." Setenta tons vermelhos misturados ao doce perfume da
ruivinha.
"...não é lindo?!"
O mestre Monet não seria mais impactante.
De um lado ou de outro, nada de prédios para atrapalhar a obra-prima.
Quatro velhos embasbacados no Louvre logo seguem o rumo, deixando, para
você e sua ruivinha, o bendito espaço na passarela.
"Ei, moço, só
não olhe demais para o sol, tá?"
"?"
A última máquina vai resfolegando:
fim do expediente dos operários.
"Dizem que o sol tem poderes mágicos:
se você olhar demais, acaba ficando preso no lugar dele, e ele no seu."
"Não creio nessas crendices."
É doce, o místico riso de uma ruivinha.
"O
que há de bom pra fazer em Sarandi?"
"Nada...."
Olhos melancólicos da
mais profunda tristeza.
"...não tem arte..." "!"
"...não tem um bar de rock..."
"!!"
"...nem balada que toque música eletrônica...."
Não seria, esse, único lado positivo?
"...Sarandi é uma cidade maravilhosa, se você quer morrer de tédio", ela diz.
"Maringá é uma cidade maravilhosa, se você quer ser esfaqueada no meio da rua", devolvo.
Ela
estende sorrisos, evitando encarar o sol – qual dos dois, mais
vermelhinho? O vermelho do sol soa um tanto assustador. Há algo de
infernal e sedutor no pôr do sol de Sarandi. Lembro as palavras da
ruiva: tome cuidado com o sol. Encaro-o bem, quase sem medo: não parece
enigmático nesse fim de tarde? Fixo os olhos sem piscar. Um tanto
surpreso, vejo meu rosto na passarela, enxergo os detalhes daqui do
alto: o chapéu preto, a camisa florida, o bloco de notas na mão. Faz
calor demais aqui em cima. Nunca senti tanta febre nem cobicei tanta
água. Lá embaixo, uma velha repreende o neto, que desiste de me olhar e
protege a vista com as duas mãos. Quero correr, mas sinto o corpo
pesado. Tento descer de uma vez, mas é impossível. A ruivinha hippie se
despede e vai embora, caminhando em direção à Avenida Londrina. Lá
embaixo, o corpo que me pertencia continua me encarando. Parece dizer
algo, só que é impossível ouvir de tão longe. Será uma despedida? Tento
gritar, mas, que diabos!, não há qualquer voz para gritar. Ele entra no
carro e acelera feito louco. Espero que faça o que eu faria. Que siga
para o jornal e escreva a crônica sobre o novo ponto turístico de
Sarandi, a passarela que eu, agora, ilumino nos fins de tarde.
Publicado em O Diário (16/8/2016)
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