Por que as pessoas desistem de viver? Única dúvida desperta diversas
perguntas. Falta de dinheiro? Frustração amorosa? Insatisfação com o
Grêmio Maringá? Desolação com a arte pós-Duchamp? Há dezenas de
mistérios envolvendo suicidas, mas uma coisa é certa: na hora da morte,
eles preferem a Avenida Carneiro Leão, mais especificamente dois prédios
de lá. O Centro Empresarial Transamérica e Centro Comercial Europa.
Ambos com 14 andares, separados um do outro por apenas 69 passos - o
número mais sacana da vida! -, os prédios contabilizam quatro suicídios.
"Se alguém se arremessa em um lugar, não há nada incomum. Mas se duas,
três, quatro pessoas, de repente começam a procurar o mesmo canto...
Bom, daí a coisa fica meio esquisita, né?", observa um empresário,
prestes a entrar no Edifício Europa.
Lá dentro, um silêncio
assustador emana das saletas de advogados, dentistas e escritórios de
contabilidade. Pessoas se cruzam caladas e cabisbaixas, cada uma
compenetrada nos próprios problemas existenciais - pensam elas, será, em
desistir de vez? Desafiando os degraus quase infinitos, chego morto de
cansaço num escritório do primeiro andar. A telefonista simpática me
estende sorrisos e vai logo oferecendo ajuda. Pergunto sobre os tantos
suicidas que se jogaram ali do prédio. "Pelo que eu sei, foram quatro
suicídios. Dois aqui no Europa, com as pessoas caindo na calçada, e
outros dois no Transamérica, no espaço interno do prédio", conta Mari
Segatti, 49. "Parece que um rapaz pulou daqui porque tava endividado. A
moça, desilusão amorosa. Tenho pena deles, viu? Eu mesma nunca pensei em
me matar. Desde cedo, minha mãe, uma guerreira que admiro muito, me
ensinou a encarar os problemas e seguir sempre em frente. Você não sabe o
inferno que passamos. Minha única lembrança do meu pai é dele com foice
na mão pra bater na minha mãe. Viemos fugidas de Paraíso do Norte. Mas,
peraí, essas perguntas são para quê?" Ainda esbaforido e tonto da
caminhada, nem disse nome nem expliquei nada. A revelação ofegante –
ainda hoje morreremos de infarto? - causa assombro à telefonista.
"NÃO
PODE SER! Minha nossa, minha mãe te ama. ELA TE AMA! Tem 72 anos e pega
o jornal de domingo só pra te ler. E ela morre de dar risada! Você não
imagina, Gaioto, o bem que faz pra minha mãe. Acredita que renovei a
assinatura do jornal só por sua causa? Mas que coisa, hein! Ainda não tô
acreditando. Você... bem aqui! A gente pode tirar uma foto? Quero
mostrar pra ela que você não é um senhorzinho, mas um jovem."
Tiramos
selfie sorridente. E rabisco carinhos num bilhetinho: "Dona Idalina,
não perca o texto do próximo domingo. Você estará nele. Beijão, Gaioto."
No
ápice da notoriedade - algo radicalmente diferente da fama, uma versão
vulgar que ilude cantores sertânicos -, deixo o prédio e esbarro em mais
semblantes tristes. Entre lojas de cosméticos, barbearias, colchões e
empresas de crédito no Transamérica, trombo em dezenas de rostos
exaustos – todos cogitando o fim de tudo? O silêncio, no hall do prédio,
é ensurdecedor. O calor lá de fora, por incrível que pareça, aqui não
chega. O ventinho gelado te arrepia a espinha – será o doce sussurro da
morte?
"O pessoal, quando resolve se jogar, cai exatamente aqui",
diz João Batista Nunes, 61, apontando para a frente dos elevadores. Há
18 anos ceifando cabelos alheios, Nunes acompanhou, de perto, os únicos
dois saltos mortais. "É uma tristeza, viu? Ninguém sabe explicar a vida
deles. Tanto prédio na cidade, logo esses daqui? Felizmente, pararam com
isso. Pelo menos, por enquanto."
O quinto do pai
No terceiro andar, identifico um conhecido. Sessentão aposentado,
ex-bancário, bochechas coradas.Volta e meia na companhia de moçoilas,
sempre pondo a mão sobre o peito – ameaças do ataque fulminante?
"Veio se matar, Seu Dorival?"
"Não tô pensando mais nisso não, mas já pensei muito."
"Verdade?"
"Claro. Águas passadas, dureza total."
"Falta de dinheiro?"
"Que nada. Uma morena."
Chapéu marrom-claro na mão, ligeiro abanando o rosto – o amor deixa marcas que não dá para apagar.
"Deslumbrante, a morena?"
"E como! Coxão assim, ó. Peitão desse tamanho."
Cabeça doida, coração na mão, desejo pegando fogo...
"Ai, só de lembrar."
...esse Fagner sabe mesmo das coisas.
"A
gente se conheceu num baile em Marialva. Daí em diante, não
desgrudamos. Era pobrezinha e resolvi pagar a faculdade de Direito, aqui
em Maringá. Ela bem sabia que eu era casado."
"!"
"Passei
a bancar o apartamentinho dela. Nosso ninho de amor. Até que se
enroscou com o professor, nove anos mais velho do que eu."
"!!"
"Você sabe... Hoje, o Viagra... Não que eu precise disso, graças a Deus!"
Doce gargalhada de galã, um e outro perdigoto saltando boca afora.
"Começamos
a sair, nós dois, com a morena. Em dias diferentes, claro. Num sábado,
ele se confundiu e foi bater no nosso ninho de amor. Levava buquê de
rosa e vinho argentino, acredita? Ficou vermelho de raiva e, depois, me
procurou. 'Quanto cê paga pra ela, hein?', ele perguntava. Fiz as
contas: restaurante, aluguel do nosso ninho, aula de inglês e espanhol,
parcela do carrinho, mensalidade da graduação: quatro mil e pouco. 'Pago
o dobro pra ela. E você some, tá certo?' Respondi que sim, mas a morena
continuou me procurando. Assim, por três anos. Até que nasceu o filho
da morena. Um bebezão lindão. E a gente continuou saindo. Ela levando o
filhinho junto nos nossos encontros no Egitu's, no Romanu's ..."
"!"
"...já se perguntou por que esses lugares têm essas fixações mesopotâmicas?"
"?!"
"Daí não suportei mais aquilo. Terminei. Há dois anos, a morena me procurou. Dizendo que o professor acusa o filho de ser meu."
"E é?"
"A prova está nas bochechas coradinhas!", comenta Dorival, orgulhoso da obra-prima.
"Hoje
encaro numa boa. Mas pensei em me matar. De verdade. Eu, casado a vida
toda, maior exemplo de dignidade... Fazendo filho em outra?! Minha
família não ia suportar."
"Chegou a pensar no local?"
"Seria
ou aqui ou no Europa. É o point dos suicidas", diz, alegrinho. "O que
me salvou foi o trabalho. Também arranjei um hobby: natação. Rapidinho,
esqueci os problemas. Já imaginou? Eu, agora, mortinho da Silva? Que
bobagem. Hoje, se ela volta, nem me importo. Assumo a criança de vez. Já
criei quatro filhos. Não me custa criar o quinto."
Diálogos fatais
No 14º andar do Transamérica, salas
comerciais escancaram serviços num silêncio fúnebre. É aqui que a morte
ronda, sedenta, à espera de novos saltos. No corredor vazio, tomo um
baita susto com a visão: empunhando uma foice na mão direita e vestindo
uma túnica negra, encobrindo toda a cabeça, encontro a Morte caminhando
em minha direção.
"É você mesma?"
"Quem mais poderia ser?"
Vozinha dos diabos, aguda e estridente: a Morte tem os mesmos tons da cantora Joelma.
"Venho falando sobre você o dia todo."
"Ouvi o chamado. O que quer de mim?"
"Por que você costuma agir aqui, entre o Transamérica e o Europa?"
"É
perto do Terminal Rodoviário, posso vir a pé ou de mototaxi. Além
disso, há bons bares e restaurantes na região para depois do
expediente."
"Como decide quem vai partir?"
"Não decido.
Só cumpro meu trabalho. Presto serviço terceirizado, temos sindicato e
tudo. Nosso sistema é organizadíssimo. Pego a alma aqui e despacho do
outro lado da existência. Lá, outro colaborador decide se irá para o
inferno, purgatório ou céu."
"Como é exatamente o outro lado da existência?"
"Quer que eu te mostre agora?"
"Acho melhor não."
"Certo. Ainda não é sua hora."
"Quando será?"
"Tá longe, pelo que ouvi dizer. Ainda tem muitos textos pela frente."
"Você, também, uma leitora fiel?"
"Vejo vez ou outra, mas, não me leve a mal, prefiro as crônicas do Demarchi e do Reginaldo."
"Muitas pessoas pedem pra morrer?"
"Toda hora. Me acionam e vou até o lugar. No começo, é tudo maravilhoso. Depois, a rotina vira uma chatice."
"Como assim?"
"Muita
gente me chama e depois se arrepende no meio do caminho. Ficam de
conversinha e já não querem se matar. Tô velha, sabe? Já não tenho
aquela paciência do início da carreira. Dialogando, pacientemente,
convencendo as pessoas. Pelo amor de Deus, hein, não vai colocar isso no
teu texto!"
"Pode deixar."
"Há um bom tempo, já faço tudo
maquinalmente: 'ô fulano, vai logo, se joga daí de uma vez, pô!'. Só
faço uma exigência: não esqueça o bilhete, dobrado dentro da carteira,
em letra legível. É mais fácil pra identificar o corpo."
"Essas são suas primeiras declarações oficiais à imprensa?"
"Creio que sim. Quando estive com Hemingway..."
"Você esteve com Hemingway?!"
"...sim. Em 2 de julho de 1960. Ou 1961, não me lembro."
"Caramba!"
"Era um gênio, né? E vou te confessar uma coisa. Foi a única vez que implorei para que alguém não cometesse suicídio."
"Você poderia ter evitado o suicídio do Hemingway?!"
"Tentei
de todas as formas. Mas ele estava muito bêbado e, sobretudo, decidido.
Queria passar de uma vez para o outro lado. Conversamos durante horas.
Ele criticava tudo e todos e tomava um copão inteiro de Mojito. Num
determinado momento, Hemingway me encarou, rindo, e disse bem assim: 'Se
eu não estivesse tão decidido, publicaria nossa conversa na New Yorker,
com o título 'O Velho e a Morte'. Daí pegou a espingarda e deu um tiro
na cabeça."
Convido a Morte para tomar umas cervejas comigo no Divina Dose, mas ela recusa.
"Não
bebo no meio do expediente. Além do mais, preciso correr. Outro
roqueiro de 33 anos acaba de solicitar meus serviços urgentemente",
explica, desaparecendo no corredor.
Na última olhada para o hall
do Transamérica, você pensa na Nona Sinfonia de Dvorák, no "Guerra e
Paz" do Tolstói, no filme do Woody Allen que ainda não estreou, nos
versos do E. E. Cummings, nas obras completas de Dalton Trevisan: há
motivos de sobra para suportar essa vida inautêntica.
Publicado em O Diário (8/8/2016)
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