Querida Maringá, cada cidade tem o mitógrafo que merece. Balzac
mitificou Paris. Dostoiévski imortalizou São Petersburgo. James Joyce
deu vida a Dublin. John dos Passos até passou por você, em 1956,
vivenciando teu calor insuportável e tua poeira de sangue e, nas linhas
que dedicou a você, notou a fertilidade dessa tua terra vermelha: "Nela
cresce qualquer coisa". Mas as poucas linhas de John dos Passos não são o
suficiente para te mitificar. Nessa lacuna, meu fim é te encarar. Sorte
tua ou azar?
Não sei se tem me acompanhado, mas, há algum tempo,
venho sendo teu mitógrafo. A cada domingo, navego tuas ruas, percorro
teus personagens, descubro cenários ignorados pelo cotidiano. O calor
dos diabos deve ser o mesmo testemunhado pelo John dos Passos. A poeira
vermelha agora tem setenta tons de cinza, resultado dos prédios
colossais que brotam nas tuas calçadas. Nas tuas curvas, Maringá, vejo
de tudo. O famoso padre-cantor que insiste em te visitar, as velhas que
te dançam com dentaduras vacilantes nos bailes da prefeitura, as
crianças babonas que te descobrem na palma da mão. A cada passo que você
dá, Maringá, eu te acompanho - ou será o contrário?
Meu maior
prazer é te percorrer. Tuas ruas são planas, nada de ladeiras e descidas
de tirar o fôlego – de passagem por aqui, os 350 mil moradores de Ponta
Grossa morrem de inveja. Maringá não é menos andável que Paris, Nova
Iorque, Buenos Aires. Você zanza de lá para cá e nunca se cansa. É
caminhando que te curto, Maringá. E também é caminhando, debaixo dos
49ºC do sol sempre impiedoso, que eu te odeio.
Na idade mais
sacana da vida - quem detesta completar meia nove? -, você, Maringá, é
uma senhora serelepe maníaca por remédios - qual outra cidade tem tantas
farmácias? Vaidosa, cuida como ninguém da aparência - daí teus milhares
de cirurgiões plásticos engalfinhando-se em tantas clínicas. Quase
setentinha, você é louca por esportes - dez entre dez maringaenses dão
volta no Parque do Ingá, no Willie Davids, no Parque Alfredo Nyffeler ou
em outro dos teus cantos verdes. Festeira e danada, você nunca nega a
saideira – teus bares jamais regulam horário, e a cerveja, como nas
benditas mesas no Divina Dose, surgem sempre geladíssimas. Por isso,
pelos porres infinitos, eu me levanto para você, ligeiramente
alcoolizado, e brindo tua saúde. Mas na ressaca do dia seguinte,
Maringá, os vizinhos me acordam com os berros estridentes das tuas 300
duplas sertânicas – são 312 duplas no País inteiro. Você é sádica,
Maringá.
Renego a Maringá da chatíssima igreja-cone, com suas
milhares de beatas xiitas empunhando os livros do famoso padre-cantor.
Não reconheço a Maringá do capenguinha Joubert de Carvalho - eis a
musiquinha mais ordinária e ingênua da história da MPB? Rejeito a
Maringá da sétima divisão com time desfalcado. Do cachorro-quente
recheado de azia em cada esquina. Essa daí não é minha cidade.
Minha
Maringá tem moçoilas desfilando diariamente em vestidíssimos floridos –
negras, ruivas, loiras, mestiças, outras magníficas de traços
indígenas. Minha Maringá é do Poty ignorado – há dois grandes murais
dele espalhados por aqui, já reparou? Minha Maringá é dos índios
kaingangs com balaios coloridos. Da mitológica Tia Maria exibindo, na
Pernambucanas, o caminho da perdição. Do Juarez Arantes regalando-se com
bolos de baunilha e acelerando pelas ruas em seu Del Rey preto
antiostentação – quem imagina, ali, um milionário? Das moçoilas
sexagenárias oferecendo cervejinha carérrima no Skolzinho, no Stop e no
Nara's Bar. Dos hippies, cantores satânicos e do Fábio Evans vendendo
poemas na São Paulo. Dos causos caóticos nos corredores do edifício
Mauricio Schulman, na Zona 7. Dos artesãos, bêbados, ciganos, malditos e
foragidos da polícia bebendo a noite no Posto da Paraná. Da velha
freira doidinha que, toda de preto, bate pernas pela cidade e reza em
silêncio – para onde vai, toda noite, a freira doidinha?
Minha
relação contigo, Maringá, é de ódio e apego, desespero e serenidade,
sedução e desilusão, berros e silêncios. Intensa e desequilibrada como
toda grande história de amor.
Publicado no Diário (8/5/2016)
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