sexta-feira, 13 de maio de 2016

Odeio te amar, minha Maringá

Querida Maringá, cada cidade tem o mitógrafo que merece. Balzac mitificou Paris. Dostoiévski imortalizou São Petersburgo. James Joyce deu vida a Dublin. John dos Passos até passou por você, em 1956, vivenciando teu calor insuportável e tua poeira de sangue e, nas linhas que dedicou a você, notou a fertilidade dessa tua terra vermelha: "Nela cresce qualquer coisa". Mas as poucas linhas de John dos Passos não são o suficiente para te mitificar. Nessa lacuna, meu fim é te encarar. Sorte tua ou azar?

Não sei se tem me acompanhado, mas, há algum tempo, venho sendo teu mitógrafo. A cada domingo, navego tuas ruas, percorro teus personagens, descubro cenários ignorados pelo cotidiano. O calor dos diabos deve ser o mesmo testemunhado pelo John dos Passos. A poeira vermelha agora tem setenta tons de cinza, resultado dos prédios colossais que brotam nas tuas calçadas. Nas tuas curvas, Maringá, vejo de tudo. O famoso padre-cantor que insiste em te visitar, as velhas que te dançam com dentaduras vacilantes nos bailes da prefeitura, as crianças babonas que te descobrem na palma da mão. A cada passo que você dá, Maringá, eu te acompanho - ou será o contrário?

Meu maior prazer é te percorrer. Tuas ruas são planas, nada de ladeiras e descidas de tirar o fôlego – de passagem por aqui, os 350 mil moradores de Ponta Grossa morrem de inveja. Maringá não é menos andável que Paris, Nova Iorque, Buenos Aires. Você zanza de lá para cá e nunca se cansa. É caminhando que te curto, Maringá. E também é caminhando, debaixo dos 49ºC do sol sempre impiedoso, que eu te odeio.

Na idade mais sacana da vida - quem detesta completar meia nove? -, você, Maringá, é uma senhora serelepe maníaca por remédios - qual outra cidade tem tantas farmácias? Vaidosa, cuida como ninguém da aparência - daí teus milhares de cirurgiões plásticos engalfinhando-se em tantas clínicas. Quase setentinha, você é louca por esportes - dez entre dez maringaenses dão volta no Parque do Ingá, no Willie Davids, no Parque Alfredo Nyffeler ou em outro dos teus cantos verdes. Festeira e danada, você nunca nega a saideira – teus bares jamais regulam horário, e a cerveja, como nas benditas mesas no Divina Dose, surgem sempre geladíssimas. Por isso, pelos porres infinitos, eu me levanto para você, ligeiramente alcoolizado, e brindo tua saúde. Mas na ressaca do dia seguinte, Maringá, os vizinhos me acordam com os berros estridentes das tuas 300 duplas sertânicas – são 312 duplas no País inteiro. Você é sádica, Maringá.

Renego a Maringá da chatíssima igreja-cone, com suas milhares de beatas xiitas empunhando os livros do famoso padre-cantor. Não reconheço a Maringá do capenguinha Joubert de Carvalho - eis a musiquinha mais ordinária e ingênua da história da MPB? Rejeito a Maringá da sétima divisão com time desfalcado. Do cachorro-quente recheado de azia em cada esquina. Essa daí não é minha cidade.

Minha Maringá tem moçoilas desfilando diariamente em vestidíssimos floridos – negras, ruivas, loiras, mestiças, outras magníficas de traços indígenas. Minha Maringá é do Poty ignorado – há dois grandes murais dele espalhados por aqui, já reparou? Minha Maringá é dos índios kaingangs com balaios coloridos. Da mitológica Tia Maria exibindo, na Pernambucanas, o caminho da perdição. Do Juarez Arantes regalando-se com bolos de baunilha e acelerando pelas ruas em seu Del Rey preto antiostentação – quem imagina, ali, um milionário? Das moçoilas sexagenárias oferecendo cervejinha carérrima no Skolzinho, no Stop e no Nara's Bar. Dos hippies, cantores satânicos e do Fábio Evans vendendo poemas na São Paulo. Dos causos caóticos nos corredores do edifício Mauricio Schulman, na Zona 7. Dos artesãos, bêbados, ciganos, malditos e foragidos da polícia bebendo a noite no Posto da Paraná. Da velha freira doidinha que, toda de preto, bate pernas pela cidade e reza em silêncio – para onde vai, toda noite, a freira doidinha?

Minha relação contigo, Maringá, é de ódio e apego, desespero e serenidade, sedução e desilusão, berros e silêncios. Intensa e desequilibrada como toda grande história de amor.

Publicado no Diário (8/5/2016)

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