Gritos. Berros. Histeria coletiva. Olhos ensopados de lágrimas. Mãos
e braços tremelicantes. Cantorias e palminhas na fila quilométrica.
Onde você está mesmo? Prestes a entrar no camarim do Paul McCartney?
Não. É um público diferente. Olhe à sua volta. Velhas, muitas velhas.
Velhas rezando terço. Velhas enfrentando filas de até cinco horas.
Velhas desafinando o punhado de canções religiosas. Velhas com tubo de
oxigênio. Velhas zanzando em cadeiras de rodas. Velhas exigindo filas
prioritárias – com qual fim, se são todas velhas?
Pode a bomba cair duas vezes no mesmo lugar? Sim, ela cai.
Oito
meses depois, aqui estamos, no shopping Catuaí, novamente à espera do
padre Marcelo Rossi. Da última vez, tentei de todas as formas me
aproximar, sem sucesso, do padre-cantor. Por meio da assessora, descobri
que ele só havia atendido a Globo e o SBT. O jornal impresso não era o
foco dele. Curioso, isso. No início de tudo, não era só o verbo?
Determinado
a falar com o padre, pedi conselhos ao meu amigo Baiano. Engenheiro
mecânico e, nas horas vagas, ateu por natureza, ele é um grande leitor
de Daniel Dennett, Richard Dawkins e Christopher Hitchens. Por e-mail,
Baiano me encaminhou 39 perguntas que eu deveria fazer ao padre-cantor,
como: 1) Por que Deus abriu o Mar Vermelho para que Moisés tirasse os
judeus do Egito, mas não abriu os portões dos campos de concentração?;
2) Cristãos dizem que se um bebê morrer, ele vai para o céu. Por que,
então, os mesmos cristãos são tão contrários ao aborto, se isso privaria
as crianças de irem para o inferno?; 3) Por que Deus mandou o dilúvio
para eliminar o mal na Terra, se não funcionou, e o mal voltou logo em
seguida? Deus, onipotente e onisciente, já deveria saber que isso
aconteceria. Por que, então, ele se deu ao trabalho?; 4) Cristãos adoram
dizer o quanto Jesus se sacrificou por nós. Mas, se ele era Deus, então
como não sabia que, em três dias, estaria no céu para nos governar? Se
ele está lá vivo, o que exatamente ele sacrificou?; 5) Todos somos,
realmente, filhos de Deus? Até mesmo Charles Manson, Suzane Von
Richthofen, Motoqueiro Atirador de Goiânia, Maníaco da Torre, Luan
Santana?
Além das questões religiosas do Baiano, também tenho
minha listinha de indagações, mais direcionada às veredas culturais –
que revelam, e muito, as peculiaridades de qualquer sujeito. Prefere, o
padre-cantor, Lennon ou McCartney? Woody Allen ou Pedro Almodóvar? Sasha
Grey ou Sensi Pearl? Essas respostas, infelizmente, você jamais saberá.
Porque o assessor de imprensa das Livrarias Curitiba, mesmo sem saber
quais perguntas levo na manga, já elimina qualquer possibilidade de
diálogo com o padre-cantor. "Infelizmente, o padre Marcelo só vai
atender os veículos de comunicação que agendaram previamente a
entrevista. Sinto muito, Gaioto."
Churrasqueiro da fé
Sem acesso ao padre, pego minha listinha de perguntas e vou direto ao
povo – não é a tal voz de Deus? Às duas em ponto, quase 800 velhas e
tiazonas enfileiradas. A primeiríssima, Marina David, 57, chegou às duas
da madrugada. Fã do padre-cantor, ela já ganhou a bênção dele no ano
passado. "Mas foi rápido demais, porque já estava muito tarde e o padre
acelerou o atendimento." Dessa vez, Marina não hesitou em perder um dia
de trabalho só para ser a primeirona. "Acho que vou ter mais tempo pra
falar com ele, né? A palavra dele me leva à comoção. Ele é diferente dos
outros padres. Nem se compara ao padre Fábio de Melo, que é só cantor. O
padre Marcelo é mais espiritual: ele acende o fogo da fé."
Gostei
de Marina. Talvez ela seja a pessoa certa para responder as perguntas
do Baiano. Tiro a listinha do bolso e escolho uma pergunta
aleatoriamente. "Cristãos dizem que se um bebê morrer", vou lendo em voz
alta, "ele vai para o céu. Por que, então, os mesmos cristãos são tão
contrários ao aborto, se isso privaria as crianças de irem para o
inferno?"
Sem respostas, Marina até esboça alguma coisa, mas
desiste. Acuada, busca ajuda no rosto das amigas. Rapidinho, o batalhão
de velhas fiéis te cerca, metralhando uma porção de respostas para todos
os lados.
"Porque todos temos direito à vida!"
"Quem vai parar no inferno são os médicos!"
"Isso é coisa de assassino."
"Qual diferença de quem tira a vida de um bebê e de um homem?!"
"Isso é coisa que se pergunte, moço!?"
"Quem faz aborto não tem Jesus no coração."
As respostas são ecléticas, mas sempre fogem à questão. E Marina também sente que são todas insuficientes.
"Vou
te contar uma coisa", avisa. "Quando tinha 32 anos, fui mãe solteira.
Comi o pão que o Diabo amassou. Tive três filhos. Sem casa, passando
fome, frio, morando sabe onde? Debaixo da ponte. Eu e meus três filhos.
Todo mundo dormindo no piso bruto. Hoje, tá todo mundo aí: casado, bem
de vida. Já pensou se eu tivesse feito aborto? O que seria de mim? E
deles?"
Reza e tragédia
Sigo pela multidão. Sentada na banquetinha
de plástico, a velha vai despindo, lentamente, o sapatão laranja.
Meiona por meiona, lentamente, até a brisa geladinha refrescar cada
pezão inchado, decorado por escamações, micoses, frieiras, bicho
geográfico e unhas macilentas. Apavorado, você testemunha o silencioso
strip-tease dos pezões octogenários. Por sorte, gritos e assovios
desviam tua atenção. Seis sujeitos passam por uma área isolada, ao lado
da fila. Velhas descalças levitam na pontinha dos pezões. Ainda não é o
padre-cantor. Mas é suficiente para estimular a contagiante cantoria de
dois versos minimalistas:
"Padre Marcelo, cadê você?
Eu vim aqui só pra te ver!"
(repete infinitas vezes, até a exaustão).
"Quando
olho pro padre Marcelo, vejo Jesus em pessoa", comenta a auxiliar de
administração Cleuza Martins, 56, interrompendo o grito de guerra.
Gozando merecidas férias, ela veio sozinha, na companhia apenas de
familiares emoldurados. "Onde a mãe vai, as fotos também vão. Trouxe uma
foto de cada filho, ó, todas do dia do casamento. É para a bênção do
padre", exibe, toda serelepe.
Quero saber das histórias
impossíveis. Milagres, mágicas, esse tipo de coisa. "Tá falando com a
pessoa certa. Tenho vários testemunhos. São tantas histórias do Deus do
Impossível que você vai dizer: 'essa mulher é doida!'"
Abraçando
molduras, ela começa o relato, e, aos poucos, as velhas em volta
escancaram ouvidos à trama. "Há dois anos, meu genro, minha filha e meus
dois netos saíram de carro, enquanto fiquei em casa com meu netinho de
colo. Quando eles viraram a esquina, já senti a voz Dele. Era uma voz
grave, falando direto no meu coração. Como eu sabia que era Deus? Porque
era, ora. Senti uma coisa ruim e fui pro meu quarto. Comecei a rezar,
pedindo misericórdia. E não deu outra. Meu filho tava em alta velocidade
e bateu o carro na Nildo Ribeiro. Deu perca total. Você tinha que ver
como ficou o carro dele e do outro motorista. Uma cena horrorosa.
Felizmente, todos saíram vivinhos."
Diante dos cochichos
espirituais, não será ela capaz de responder única pergunta da lista do
Baiano? Ela sorri, disposta a esclarecer os mistérios da fé.
"Por
que Deus abriu o Mar Vermelho para que Moisés tirasse os judeus do
Egito, mas não abriu os portões dos campos de concentração?", questiono.
Com
todos os seus testemunhos, Cleuza pensa quatro, cinco, seis vezes. A
hesitação é evidente. Talvez, ela lembrasse daquela história do judeu
faminto, pai de família e muito religioso que pediu um pouco de comida a
um soldado alemão no campo de concentração. O soldado, então, pegou um
rato vivo e colocou nas mãos do judeu. Em seguida, apontou uma arma para
o judeu e ordenou que ele comesse, ali mesmo, aquele rato, vivo.
"Nos
campos de concentração não tinha ninguém de fé! Judeu não tem fé, meu
filho", garante Cleuza, antes de acrescentar: "As coisas às vezes
acontecem porque precisam acontecer. Os mistérios de Deus são grandes."
Sangue azul
Mais atrás, descubro Thereza Iracema dos
Santos, 77. Encarou os 112,6 quilômetros que separam Tapejara de
Maringá. E, nos dias em que permaneceu por aqui, fez questão de
aproveitar a vasta agenda cultural da cidade. "Ontem, fui ver a palestra
do Doutor Bactéria. Hoje, vim no padre Marcelo. Não é uma maravilha?",
comenta, feliz da vida. Boa de prosa, conta detalhes bombásticos de seus
longínquos ancestrais. "Sou de família italiana. Sabia que sou
descendente do Papa Pio 10?" Com as veias cheias de sangue azul, comento
que ela deveria ter direito a algum acesso exclusivo que facilitasse o
encontro com o padre-cantor. Rapidinho, ela escancara o sorrisão – ela
ainda não tinha pensado nisso.
Enquanto Thereza reflete sobre seus direitos, garantidos pela árvore genealógica, puxo conversa com uma loira de olhos chorosos.
"Sou
louca pelo padre", desabafa a psicóloga Kelly Moraes, 39. "Já vi ele em
Londrina, em fevereiro deste ano, em Curitiba, em março, e agora aqui
em Maringá. Só falta ele ir pra minha cidade, Cascavel, que eu vou de
novo atrás dele", avisa.
"Com ele, eu arrepio da cabeça aos pés", revela.
Na aliança brilhante, a mais óbvia pergunta.
"O maridão não sente ciúmes?"
"Olha, vou te contar, viu..."
Quantas revelações se escondem num sorriso danado?
"...ele fica um pouco enciumado, sim!"
Seleciono perguntas aleatórias da listinha do Baiano.
"Por que Deus é do sexo masculino?"
"Deus é Deus, ué. Nem homem nem mulher."
"Se o design de Deus é tão inteligente, por que homens têm mamilos?"
"Porque seria horrível nada não ter. Já pensou?"
"Se
o Satanás é o Pai da Mentira, como podemos ter certeza de que ele não
enganou os cristãos e fez com que eles o adorassem como deus e
rejeitassem o legítimo Deus?"
"Impossível: Deus é mais!"
Agradeço a conversa, ainda insatisfeito com as respostas.
Metallica & Jesus
Na fila, uma moçoila chama a
atenção. Rosas negras tatuadas no braço direito, frases agigantadas
marcadas no punho esquerdo e flores coloridas no punho direito.
"Gosta de rock?", vou sondando.
"Adoro
Guns, Cash, Bob Dylan e, principalmente, Metallica. Até fui no show
deles ano passado, no Rock in Rio, e fiquei bem pertinho do palco. Gosto
de rock e de Deus. Na verdade, não sei o que seria da minha vida sem
oração", comenta Alessandra Cussolin, 22.
Diariamente, ela gasta
exatamente dez minutos rezando. Dez minutos: tempo para ler quatro ou
cinco páginas de um romance de Philip Roth; ouvir "Moment's Notice",
executada pelo John Coltrane; ou, ainda, fazer uma torta salgada no
liquidificador. Pergunto a Alessandra se ela já pensou em usar esses dez
minutos diários para fazer outras coisas, em vez de rezar. "De forma
alguma. Eu não tenho outra coisa melhor para fazer nesse tempo",
comenta, no exato momento em que começa o berreiro, despertando palmas
de aleluia. Três horas em ponto. O padre-cantor vai começar a maratona
de autógrafos.
"Quer dar uma olhada no padre?", oferece o
assessor de imprensa. "Só não pode fazer perguntas, certo?" Certo. Ganho
acesso a uma área lateral, longe das filas congestionadas, que dá
acesso imediato à saleta onde enfiaram o padre-cantor. Durante o
trajeto, minhas velhas amigas me acenam e lançam sorrisos – por dentro
me amaldiçoam e torcem pelo pior.
Garrancho da fé
Dentro da saleta, dois grandes caixotes
recebem os pedidos de orações dos leitores. É só passar e arremessar lá
dentro. Teoricamente, o padre-cantor vai ler um por um e interceder por
todos. Pego um bilhetinho. Letra tremida, miúda, sem qualquer pontuação,
empanturrada de erros gramaticais:
"Padre marcelo pelo amor de deus não esqueci di mim minha filha tem muita depreção principalmente no trabalho."
Epa, quem não tem depressão no meio do trabalho? Pego outro bilhetinho.
Garrancho quase incompreensível, com letras agigantadas e tremelicantes, em linhas grávidas de novos erros gramaticais.
"Padre
marcelo estou escrevendo porque fiquei com medo eu já fiz muito medroza
porque vivo sozinha ainda tem este velho Leonildo que vive aqui dentro
da minha casa enfrentando eu tanto tempo que vivemos separados não tem
nada entre nós ele continua aqui brigando entrando no meio esse velho
horrivel o velho Leonildo."
Nem com santa paciência dá para encarar essas centenas de bilhetes.
Paraíso
A dez passos de distância, o padre-cantor surge ainda mais
magro do que na outra vez. Grandes orelhas de três palmos abertos. Meio
corcunda. Abatidão. Toma uma bebida amarela-escura. "É Red Bull light",
dedura uma fonte que prefere não se identificar – vai que o padre se
enfeza e exclui seu nome da listinha de benção? Está explicado: vem do
Red Bull a força estranha que mantém o padre-cantor abraçando e sorrindo
para tanta gente. Para comer, a santíssima trindade favorita:
castanhas, nozes e damascos. É tudo muito rápido. Não dá para falar
quase nada. Crianças babonas a tudo olham assustadas, não compreendem o
choro dos pais, a empolgação da avó, o coração disparado saltando goela
afora - estivéssemos diante de Paul McCartney não seria a mesmíssima
coisa? Duas modelos sensuais, moreníssimas, distribuem sorrisos e
indicam a saída aos leitores fiéis. Ao lado das morenas angelicais,
testemunhando cada curva abençoada, estou finalmente no paraíso.
Publicado no Diário (18/4/2016)
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