segunda-feira, 4 de abril de 2016
Noitada cercado de bailarinas de toalhas
Crianças e adolescentes aguardam em pé na bilheteria do Teatro Calil Haddad. Organizados e disciplinados. Sem empurra-empurra. Sem fura-fila. Conversam entre si em tons amenos, uma e outra risada, sempre de olho no relógio. Mãos entrelaçam expectativas, pés batucam a espera no chão. Aguardam o quê, as dezenas de jovens maringaenses, quase todas mocinhas? Distribuição de sorvete, pipoca e algodão-doce? Ingressos para o show do Justin Bieber?
"Que nada! Hoje é noite de dança clássica. É o Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, fazendo 'Cinderela'", informa a primeirona da fila, Polyana Mauer, de 13 aninhos. "Todo mundo que já está na fila faz aulas de balé. Fiz questão de vir bem cedinho. Quero o melhor lugar, no setor B. É o mais indicado para apreciar não só a dança, mas, também, os elementos do cenário que vão mudando durante a apresentação. Em qual setor você vai?"
Não faço ideia. Nem sei direito o que avaliar. Cenários, coreografias? A mocinha nota minhas interrogações.
"Só não demore muito para entrar na fila. Que os ingressos começam a ser distribuídos uma hora antes do espetáculo. Se você demorar demais, corre o risco de ficar para fora."
Dançando direito
Agradeço à instrutora mirim. Vou pensar melhor em qual setor. A fila, noto agora, vai ficando mais encorpada – serpente rastejando rumo às escadas que dão no mural do grande Poty. Olhando melhor, não são só menininhas enfileiradas. No meio delas, um único garoto também à espera. De blazer e sapato preto, calça jeans escura – eis o único bailarino maringaense?
"Quando comecei, há dois anos, alguns tiravam sarro de mim. Resolvi ignorar os comentários. Quando estou dançando no palco, com pleno domínio da emoção, sentindo a música e recebendo os aplausos da plateia, sinto a melhor sensação do mundo", revela Yuri Braguin, 18.
Estudante de Direito, o rapaz responde a tudo seriamente. Cerimonioso. "Gosto dessas formalidades. Das regras, das leis, das regras da dança. Direito e balé têm suas semelhanças. Um dia, quero chegar ao nível do Baryshnikov. Seus saltos, giros e interpretações são impecáveis. Ele nunca dança por dançar: ele é a dança."
Há um converseiro generalizado no teatro. Gente que vai chegando e enfileirando expectativas. Famílias, namorados de mãos dadas. Crianças, várias delas. De seis, oito, doze e quinze centímetros, correndo e pulando e babando no saguão. Ai, não. Tudo, menos crianças. Quem, em sã consciência, traz propagandas ambulantes de vasectomia pra dentro de um teatro?
Atrás das crianças, o casal de idosos conversa alegrinho. Trocam impressões, cochichos, risadinhas. Aos oitenta e poucos anos - há mais de cinquenta casados? - ainda compartilham curiosidades da vida, um com o outro.
"Nunca vi um balé. Meu filho, sargento aposentado da polícia, que trouxe a gente. Ó ele chegando aí", avisa o sujeito oitentão.
Sargento aposentado chegado em balé clássico?
"E por que não?", devolve José Mantovani, 53, ao lado da esposa. "A gente faz dança de salão, uma vez por semana, das oito às dez. Bailamos bolero, forró, um pouco de tudo. Fiz novas amizades e senti que minha vida melhorou. Você fica mais saudável, né? Daí o pessoal da escola teve a ideia de vir pra cá, e não pensei duas vezes: junto trouxe meus pais. Vai ser uma noite de aprendizado", diz.
E dá-lhe bullying!
Vestidos farfalhantes. Saltinhos marchando em volta. Aromas adocicados, suaves, feromoniosos. Num retrato em branco e preto, Calil Haddad acompanha cada detalhe. Olhar sisudo e severo. Cabelo reluzente entupido de gel. No quadrinho do alto da parede, ele enxerga mais que todos nós. Sente, um por um, os perfumes das musas, cada uma devorada pelos silenciosos olhares do nosso Calil. Ele, sim, sabe das coisas.
É o próprio Calil, com a discrição de um espião inglês, sinalizando com sobrancelhas tremelicantes, quem me aponta a loirinha a alguns metros de seu retrato. Perfume levemente picante - esse, o melhor cheiro da tua vida. Sorridente num vestidíssimo, ao lado de duas amigas. Vou logo puxando papo.
"Elas duas dançam, moço. Menos eu", avisa a loirinha.
"Por que não baila?", questiono.
"É trauma de criança. Culpa da minha mãe", acusa Fabiana Artuso, 22.
Em menos de vinte segundos, prontinha para falar de seus dramas mais profundos - não é nosso tipo favorito?
Como é bom mulher que se abre.
"Nunca dancei porque minha mãe sempre dizia que eu era gorducha demais."
Covinhas poliglotas. Ombros tenros. Lábios elegantes.
"Tem certeza que..."
Sem jeito, você não começa a gaguejar?
"...fo-ra de for-ma?"
"Não foi só minha mãe. Sofri muito bullying também no colégio."
Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid Thulin.
"Os garotos me chamavam de gorda-baleia, saco de areia."
Todos tão míopes?
"Colavam chicletes na minha cadeira."
Pobres coitados cegos, malditos astigmatas.
"Sem falar nos namoricos: garotos por quem eu era apaixonada e se aproximavam de mim..."
Sempre há alguém de bom senso.
"...só pra ficar com minhas melhores amigas."
"!"
"Agora, tudo mudou: emagreci quinze quilos. Sem remédios. Fui no nutricionista e, seguindo a receita, fechei a boca. Passei a praticar exercícios. Comecei a caminhar no Parque do Ingá. Hoje, chego a dar três voltas."
Liberar endorfinas de roupinha apertadinha e cabelinho preso num rabinho de cavalo. Trotando e galopando em matas virgens, penetrando cavernas e abrindo clareiras - empunhando o facão sempre em riste! -, subindo e descendo montanhas, desbravando territórios nunca d'antes navegados - ilhas Andamão!, Tristão da Cunha!, Santa Helena! -, decorando sotaques desconhecidos, aspirando fragrâncias exóticas, mergulhando nas águas límpidas e cristalinas de sereias – ei, onde estamos indo com tudo isso? Sente os batimentos? Quase rompendo o peito? Põe a mão aqui, ó. Assim. Quase enfartando, só de imaginar essa caminhada de três voltas no nosso Parque do Ingá.
"Hoje, posso olhar para todos eles de uma forma diferente..."
Dedinhos serelepes ajeitam o vestidíssimo na cinturinha mais fina.
"...porque finalmente eu sou..."
O início, o fim e o meio?
"...GOS-TO-SO-NA."
Emerson & Hudson
Usando bonés de hip hop e bermudões folgadões, a dupla de amigos dá o ar da graça no teatro com a mesma emoção de quem declara o imposto de renda. Perdidos em cochichos desconfiados. Reticentes. Sem gestos bruscos.
"Vieram pro balé?", vou sondando.
"Balé?!", respondem, surpresos, afinados em uníssono.
Veja os rostos espantados. Em silêncio, o laboratorista Emerson Souza, 24, e o auxiliar de serviços Hudson Marques, 22, imaginam qual melhor estratégia. Mototáxi? Fugir num zepelim? Carona num disco voador?
"Vishi, nem tava sabendo", confessa Emerson.
"A gente veio por causa do colégio. Vale cinco horas. Será que..."
Quatro olhos acuados, amedrontados.
"...é legal?", pergunta Hudson, vacilante.
"Se você gosta de moças sensuais..."
"!"
"...coxas à mostra, ombros nus, clavículas tentadoras, aberturas de pernas impressionantes..."
"!!"
"...tudo com..."
Emerson & Hudson desembestam a correr para pegar os ingressos do balé.
"...boa música."
Coreografia sacolejante
A estudante Bruna Gomes e outras dezenas de estudantes da Escola Estadual Erico Verissimo, de Faxinal, alongam braços e esticam pernas. Visivelmente aliviados. O grupo sacolejou por duas horas numa viagem de ônibus. O veículo não tem ar-condicionado – as janelas arregaçam ventos refrescantes –, mas nenhum dos viajantes estava preocupado com luxos excessivos.
"O que a gente quer é curtir a cultura. Tenho 17 anos e ainda não vi um balé. Minha cidade não tem teatro, dança nem shows. Só esses sertanejos", lamenta a moça. E mais não dá para descobrir. É preciso apressar o passo, que os ingressos estão se esvaindo.
Com entrada liberada, o público vai tomando assento. Na bilheteria, uma voz estridente lamenta as verdades da vida.
"Ai, meu Deus, acabou?!", espanta-se Norma Segatti, 61, ao lado de duas menininhas de dez centímetros. "Pena que minha filha demorou demais para sair do trabalho e me trazer aqui", lamenta.
Cerca de cem pessoas não conseguem ingressos. Minha instrutora-mirim estava certa. Quem vacila nos ponteiros sempre acaba dançando.
Bailarinas de toalhas
Chego meio atrasado, o espetáculo já rolando. Num canto escuro, me acomodo em pé. Três bailarinas rapidamente somem de cena. E a cortina, então, escancara a primeira troca de cenários, arrancando suspiros coletivos.
"Uauuuu!", surpreende-se o público, embasbacado.
Será pela rápida mudança de palco? Saem os antigos elementos cênicos e surgem cadeiras, espelhos, portas gigantes, coisas que – impossível prestar atenção nos outros trecos.
Teus olhos só miram as sete bailarinas – não é o tal número sagrado? Deslizam de um canto para o outro do palco, com saltinhos e reboladinhas, enroladas apenas em toalhas brancas. Colos nus. Coxas à mostra. Ombros exibicionistas. Panturrilhas fluentes. Nas costas de bailarinas curitibanas você encontra respostas e embasamentos para uma porção de coisas, como:
1) Resolver os conflitos no Oriente Médio;
2) Apaziguar as veleidades explosivas de Kim Jong-il;
3) Solucionar os truques de mágica do Circo Tihany;
4) Escrever uma letra para "Valsa (Como São Lindos os Youguis) (Bebel)", música composta por João Gilberto e entoada apenas pela sequência enigmática de "nana, nana, nana, nana", durante exatamente três minutos e trinta e dois segundos.
No canto esquerdo do palco, uma ruivinha sorridente levanta da cadeira, depois de abrir e fechar as pernas, com as mãozinhas sobre os joelhos, e toma a frente do palco. Do alto, não parece ter nove quilômetros de pernas? Segura na pontinha dos dedos a toalha branquíssima – cai!, cai!, cai! –, enquanto desce, lentamente, até o chão. Outras pernas surgem ao lado dela. Coxas morenas, negrinhas, loirinhas – isso, o velho Degas nunca te mostrou. Na plateia, nenhuma alma entediada. A garota ciumenta estende a mão para esconder as delícias do namorado babão – não verás país nenhum. Ninguém fuça mensagens nem pensa em outras coisas. Todos os pensamentos são para as bailarinas de coxas brilhantes, ao som de violinos e violoncelos. No peito bate firme o arrependimento: da próxima vez, será da primeira fileira.
Publicado no Diário (3/4/2016)
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