segunda-feira, 21 de março de 2016

Turistando Fernando Verissimo

Depois de flanar pelo Parque Farroupilha, ainda suado de bater pernas entre árvores – algumas destroçadas pelo recente temporal -, hordas de turistas armados com celulares hipermodernos, crianças e pais entediados no vagão do “Tchezinho”, vendedores de raspadinhas berrando promoções e dezenas de ciclistas, consigo convencer minha namorada a um passeio menos romântico em Porto Alegre: conhecer Luis Fernando Verissimo.

“É muito longe daqui! E não é meio impossível? Aquela sua conhecida não disse que ele é um chato de galochas e que até negou autógrafo pra ela?”

Aquela conhecida: ex-colega de classe, louca varrida, fã de Munhoz & Mariano, Luan Santana & Michel Teló e toda a corja de berros sertânicos - eu também negaria um autógrafo pra ela.

“Disse, disse. Mas era numa feira literária”, vou lembrando, “dessas com filas gigantescas, cheia de crianças e pré-adolescentes babões, e ela, que nem livro tinha, parece que se aproximou e exigiu dedicatória numa agenda qualquer, pô! Se cada leitor chegas- se com agendas, imagina o caos que seria?!”, digo, já fazendo sinal para o ônibus parar, e empurrando minha namorada porta adentro.

Há quatro anos, Luis Fernando Verissimo passou duas semanas na UTI de um hospital e deu um baita susto em seus leitores. Quase morreu, vítima de uma infecção nos rins que ameaçava ser fatal, e, durante um tempo, manteve-se recluso dos eventos literários. Com a melhora em 2013, foi retomando a antiga rotina. Rumo aos 80 anos, comemorados no dia 26 de setembro deste ano, ele segue publicando crônicas irônicas e inteligentes nos jornais Zero Hora,O Estado de S. Paulo e O Globo. Sua obra mais recente, As mentiras que as mulheres contam saiu no ano passado e pode ser lida como uma continuação do best-seller As mentiras que os homens contam (2000), que vendeu cerca de 500 mil exemplares.

Se tudo der errado e Luis Fernando Verissimo não nos receber, recusando uma dedicatória na minha edição de Outras do analista de Bagé (1982), pelo menos estaremos na frente da casa onde morou e morreu Erico Verissimo, vou dizendo à namorada. E agora é ela quem me puxa pelo braço, porque segundo o aplicativo do celular é exatamente aqui o ponto onde temos de descer, a duas quadras de distância do destino literário.

Soldados e pardais

O bairro de Luis Fernando Verissimo parece uma zona de guerra. Soldados do exército, divididos em duplas, zanzam de um lado para o outro, batendo de porta em porta e conversando com moradores, num mutirão contra a dengue. “Podemos ir disfarçados de soldados...”, sugere minha namorada, um tanto ofegante com a subida da ladeira, “quem sabe assim ele não é obrigado a receber a gente?”

Vencida a subida, somem de cena os recrutas caçando mosquitos. Casas silenciosas. Antigas. Charmosas. Escancaro ouvidos no meio da calçada, na tentativa de escutar algum solo de clarineta, mas tudo o que ouço são os improvisos jazzísticos de um casal de pardais, se engalfinhando numa árvore de esquina. E é daqui, debaixo dos pardais, que vejo, a poucos metros, a casa de Erico e Luis Fernando Verissimo.

O carro estacionado na garagem e a porta entreaberta indicam que há gente. Azulejos coloridos. Pequeno jardim à frente – epa, não foi bem aqui que Erico tirou aquela foto, sentadão, todo sorridente?

Uma voz serelepe e gentil atende o interfone. “Então vocês querem conhecer o Luis Fernando?”, pergunta, do outro lado da linha. “Exatamente. Somos seus leitores.” “Esperem um momento. Vou abrir para vocês.” Surpreendente. Menos impossível que o esperado. Minha namorada já saca da bolsa a edição a ser autografada - nada de agendas, evidentemente.

Gente finíssima, a senhora de cabelos grisalhos surge para abrir o portão. “Muito prazer! Sou a mulher do Luis Fernando. Vocês, então, vieram do Paraná?!”

Vestidinho cinza, olhos cheios de vida e pés descalços para sentir as verdades do mundo. Sessenta e poucos anos - não aparentam só vinte e nove?! “Entrem, entrem. Só me perdoem, viu? Que isso não é traje de receber visitas. Mas vamos entrando que já vou chamá-lo.”

Antessala. Sofás para pausas rápidas. Suporte para casacos. Corredor de paredes brancas. Um quarto. Cômodos escuros. Ar condicionado refrescando a alma. “Luis Fer-naaan-dooo!”, grita a mulher, carinhosamente, convocando o marido.

No final do corredor, que dá para uma grande sala com sofás confortáveis, mesa apinhada de livros e jornais, e paredes lotadas de pinturas de artistas gaúchos, Luis Fernando Veríssimo finalmente surge em cena. Um metro e sessenta e pouco. Camisa branca por baixo da calça bege enlaçada por cinta preta. Sapatos escuros. Roupa de quem está prestes a trabalhar. “Vamos nos sentar, por favor”, convida o autor, estendendo sorrisos.

Pergunta o meu nome e o de minha namorada. Ao ouvir o nome dela, Ariádiny, lembra que já o usou em uma de suas obras.

“Foi naquele romance...”

Olhos vagueiam lembranças nas paredes de telas e aquarelas.

“...aquele...”

Sobrancelhas envergadas em busca do título perdido.

“...‘Os Espiões’”, responde, orgulhoso da própria memória.

Caminho da crônica

“O que um jovem aspirante a escritor deve ler para poder escrever bem?”, pergunto. Luis Fernando vai respondendo com calma, fazendo algumas pausas entre seus selecionados da sagrada lista.

“Eu sugiro os cronistas... Fernando Sabino... Paulo Mendes Campos... Sérgio Porto... Rubem Braga... Todos eles. E depois, é só escrever. Não precisa saber como vai terminar a história... É só pensar no início e, em seguida, desenvolver a ideia... Eu mesmo nunca sei como vou terminar uma crônica ou um conto”, revela.

“E por que essa reclusão do público e dos eventos literários?”

“Um pouco dessa minha reclusão é porque, como você sabe, sou muito tímido... Esses eventos são muito difíceis pra mim. Mesmo assim, quando sou convidado para ser patrono de festa literária ou coisa do tipo, faço um esforço para ir.” “E o próximo livro, quando vem?” “Já está com a editora. Será uma compilação de crônicas já publicadas. Ainda não tem nenhum título definido”, adianta.

“Vô, vô, vô!”, grita uma menininha, de uns cinquenta centímetros, invadindo nossa conversa. “A gente já pode ver a experiência?”

Luis Fernando abre um sorriso carinhoso.

“Claro, já vamos ver. Será que deu tempo? Gelou tudinho?”

“Eu tava vendo ali e já deu sim, ó...”

O dedinho, firme, apontando o relógio de parede.

“...passaram trinta minutos, tá vendo? A gente pode abrir o freezer?”, indaga a menina, cheia de ansiedade.

“Só mais um segundinho e o vovô já vai ver a experiência com você, tá?”

“Tá bom. Brigada, vô!”

A menina sai em disparada pelo corredor. Não queremos atrapalhar a experiência em família do autor e de sua netinha.

“Gostaríamos que você assinasse nosso livro, pode ser?”

“É claro que sim.”

Iberê particular

Depois da dedicatória, com letra miúda, típica dos tímidos, ele se levanta, pergunta se gostei dos quadros.

“São fabulosos. Você tem um verdadeiro museu. Não pensa em abrir sua casa ao público?”

“Jamais.”

“Só falta um Iberê Camargo”, digo.

“Ah, vocês gostam do Iberê?”, devolve o autor.

“Iberê é nosso maior pintor. Maior que Portinari. Que Tarsila. Que todos eles juntos. Injustamente esquecido”, respondo.

“Querem ver o Iberê que tenho aqui em casa?”, ele pergunta.

Um Iberê para chamar de seu. Luis Fernando não se surpreende com nossa cara de espanto.

“Meu pai ganhou de presente dele.Vamos até lá, na outra sala, que vou mostrar para vocês.”

Eu e minha namorada nos damos as mãos. A passos lentos, vamos seguindo o escritor. No meio do corredor, esbarramos com Capitão Rodrigo, as Cobras, Ana Terra, Analista de Bagé, Quitéria Campolargo, Ed Mort, Barcelona, Velhinha de Taubaté, Erotildes e num punhado de homens mentirosos.

A ficha agora cai: um Iberê sem faixas no chão exigindo distância da pintura. Sem seguranças
uniformizados e entediados te rondando. Quatro palmos de largura e mais duas e pouco de altura? Vermelho. Preto. Cinza. Branco. Pinceladas em relevo exibindo os traços do nosso pintor mais genial, a poucos metros do nosso cronista vivo mais genial. Além de outros quadros, as paredes surgem cheias de livros e CD’s, misturando a história de pai e filho nas estantes. “Aqui ficam as traduções dos livros do meu pai”, comenta Luis Fernando, apontando a longa fileira de livros incompreensíveis. Puxo das estantes uma edição indecifrável, com hieróglifos orientais. “Essa é de O senhor embaixador", avisa.

Fecho O senhor embaixador e pergunto a Luis Fernando se ele sentiu orgulho da bela crítica que Wilson Martins publicou sobre O Popular, seu livro de estreia, no início dos anos setenta. “Como era mesmo essa crítica?”, ele pergunta.

“‘O Popular’  não é um livro importante, mas Luis Fernando Verissimo é, ou será, um escritor importante”, decretava, em tom profético. Destacando a qualidade do autor gaúcho, enquanto jornalista e literato, o severo Wilson Martins ainda rechaçava, nas páginas de O Estado de S. Paulo, quem o tomasse apenas por “simples humorista”, o que seria “não apenas injusto, mas indesculpável erro de julgamento”.

Recepção gentil

Luis Fernando abre outro sorriso, em meio aos CD’s de Mozart, Beethoven e outros compositores clássicos, ao lado de uma vitrola que não funciona mais. “Ah, sim. Eu me lembro bem desse texto... Essa crítica do Wilson Martins me fez muito bem, na época”, admite o autor.

A criança na cozinha volta a gritar pelo avô, curiosa pela tal experiência na geladeira. Eu e minha namorada aproveitamos para agradecer a recepção gentil e carinhosa. E, acompanhados pelo autor e sua neta, vamos deixando os cômodos silenciosos, abandonando Iberê Camargo, cruzando salas de livros e arte.

Na saída, a mulher de Luis Fernando conversa com um sujeito meio gorducho e uma quarentona. Explica aos convidados que viemos do Paraná e reclama do calor infernal que abafa Porto Alegre naquele sábado. Já estamos nos despedindo do autor e de sua família quando um forte estrondo, de um objeto que acerta o chão e se arrasta até a parede, interrompe bruscamente nossos últimos diálogos.

“Meu Deus, já é a segunda vez!”, assusta-se a quarentona.

“Aqui é sempre assim”, desabafa a esposa de Luis Fernando.

Rindo do susto, todos olhamos um tanto surpresos para o jornal que acaba de ser disparado pelo entregador anônimo.

“Outro dia me acertaram a cabeça, acredita?”, lembra a quarentona, pegando o jornal do chão.

“Já entendi tudo”, diz o gorducho, olhando para Luis Fernando. “Esse cara é um leitor que te detesta. E toda vez que passa por aqui, faz questão de arremessar o jornal com raiva e rancor, pensando: ‘Toma aí, seu escritor de merda!’”.

Todos caímos na risada. O episódio certamente renderia boa crônica e, quem sabe, até algum personagem secundário num romancete. Desconfio que era exatamente nisso que o autor pensava, contemplando, num riso silencioso, o susto e a indignação da família, a fuga do arremessador de notícias, o semblante embasbacado de seus dois leitores paranaenses e a ansiedade da neta pela misteriosa experiência no freezer. Mesmo sem sair de casa, Luis Fernando Verissimo tem todas as histórias e todos os personagens que precisa.

PUBLICADO NO CORREIO BRAZILIENSE (19/3/2016)

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