Escrever a redação das férias era tarefa desesperadora para todos
nós, alunos do Colégio Santo Inácio. Vejo essas mochilas carregando
alunos, no retorno às aulas, e tenho piedade deles todos.
Quantas
inúmeras vezes você não saía da sala para ir ao banheiro, mesmo sem
vontade de esvaziar a bexiga, na tentativa de esbarrar em histórias
entre pias e privadas do colégio? Como passar a limpo o que ninguém em
sala, nem alunos nem professora, sabe exatamente o que você fez?
Clamando
a Deus e todos os santos, no bendito colégio católico, fui atendido,
certa vez, por um sussurro anônimo, soturno e sereno, porém um bocado
aterrorizante – é a mesma voz, noto agora, depois de tantos anos, que
ecoa na versão dublada de "Marcelino Pão e Vinho": "Gaioto, lembre-se
disso: no início, era o verbo".
Foi aí, com esse aviso do além, possivelmente Dele, do tradutor da Herbert Richers, que me dei conta do verbo.
Na
escola, obrigado a preencher de 27 a 35 linhas com histórias sobre
minhas férias entediantes em Maringá, aprendi a ser um mentiroso.
Não desses mentirosos que derrubam senadores ou desmoronam casamentos de longa data. Um mentiroso mais leve, suave, lírico.
Nas
minhas redações, eu namorava todas as garotas do edifício Serra da
Cantareira – inclusive as dulcíssimas irmãs de vinte e poucos anos, do
décimo primeiro andar.
Pescava tilápias agigantadas no Pesqueiro do Pacu.
Encarava jacarés, onças e rinocerontes no Parque do Ingá.
À
noite, pegava baladas na Kalahari, sempre no setor VIP, evidentemente,
sendo muitíssimo bem-sucedido com as musas da alta sociedade.
Essas
e outras mentiras costumavam causar inveja e rancor nos outros alunos –
e foi aí que eu descobri, logo cedo, que, ao escrever, você deve estar
sempre disposto a expandir sua lista de inimigos.
Se não for para
criar inimigos, então é melhor nem escrever: há outras artes, como o
canto gregoriano ou o balé clássico, mais indicados para quem quer
engatar novas amizades. Mesmo assim, como ninguém tinha férias tão
rocambolescas como as minhas – nem as mocinhas de vozes estridentes que
abraçavam o Pateta na Disney –, a coisa ficava por isso mesmo. Eu, feliz
à beça e de sorriso no rosto, redigindo minhas histórias amalucadas, e o
resto dos alunos tristonhos e altamente depressivos, conscientes do
quão entediante, tosca e mesquinha é a existência de um ser humano.
Se
você é desses alunos - pelo que me parece, há escolas exigindo esse
tipo de redação até dos coitados do Ensino Médio -, aqui vão cinco dicas
certeiras:
1) Capriche nos detalhes: cores, nomes simples e compostos, perfumes e
maus cheiros. Nenhuma verdade é mais real do que sua imaginação é capaz
de inventar.
2) Esqueça essa bobagem de começo, meio, fim. Comece o fim pelo meio,
termine pelo começo, faça do meio o teu abre: esquemas só servem para
te chicotear o lombo na escravidão.
3) Não se preocupe com os tais bloqueios criativos: durante a
escrita, use todos os possíveis adjetivos. Na primeira revisão, corte
metade deles. Na segunda leitura, mais uns vinte por cento. Na terceira,
extirpe os que sobraram. Seu texto está pronto.
4) Explore a nudez à
vontade. Da mulher, não hesite as mínimas belezas, cada pecinha de
roupa, se saltinho ou sapatinho, os tamanhos de cada detalhe do
corpinho, com suas curvas, cores, harmonias e relevos próprios. Do
homem, bem, não sei o que dizer.
5) Ao detalhar suas férias, não espere glória nem aplausos. Allan
Poe, Kafka e Lima Barreto nunca foram reconhecidos em vida. Se o
reconhecimento não vier, decepe uma das orelhas.
Caminhante
Quando viajam, sujeitos entediados lutam para não
morrer de tédio. Atazanadas de fúria uterina, moçoilas saciam todos seus
sonhos picantes – impossível detalhá-los por aqui.
Endinheirados ostentam camarotes, restaurantes carérrimos e lanchas com DJ's e modelos de passarela.
Você,
quando viaja, só quer um canto sossegado, calçadas para flanar e
algumas garrafas de vinho – mesmo nas mais longas viagens, ninguém
escapa de si mesmo.
Uruguai
Em Montevidéu, morro de amor por
Pocitos, nossa Copacabana dos anos cinquenta. Veja os prédios: todos
pequenos, limpíssimos e acinzentados decorando a orla. Num desses
apartamentos, de frente para o Rio da Prata, certamente empunhando uma
garrafa de uísque, Vinicius de Moraes compôs "A Felicidade". Caminhando pela orla, impossível não cantarolar os versos do Poetinha. Nada daqueles prediões depredados da Copacabana de hoje. Onde os viciados em sexo? Onde os tantos traficantes, drogados, trombadinhas e meretrizes sexagenárias de olhão esbugalhado? Em Montevidéu, a bossa nova ainda faz sentido. Tristeza não tem fim; Copacabana, sim.
Ser portenho
Loiras, muitas loiras. Loiras lisas, cacheadas,
naturais, oxigenadas, loiras cheias de luzes. Ombros à mostra, grandes
lábios rosados, lábios pequeninos e vermelhíssimos, bracinhos nus com ou
sem
tatuagem. Loiras de chapéu, de vestidinho florido, shortinhos ofuscantes, calças coladinhas.
Gozando merecidas férias, em meio a tantas loiras na Avenida 9 de Julho, Buenos Aires não é o melhor museu do mundo?
Melhor das piores
Se você quer morrer de tédio, gaste uma tarde em Colônia do Sacramento.
De
que serve seu famoso pôr-do-sol se não para deixar ainda mais
melancólica aquela pocilga de cidade? Ruínas, velharias, ruas em
pé-de-moleque, casarões empedernidos, restaurantes ruins num calor dos
diabos. Turistas ensopados de suor lamentam o azar – qual maldito te aconselhou passar duas noites aqui?
Sem
nada para fazer, você planeja os mínimos detalhes da tua vingança. De
volta da viagem – danem-se os tais mandamentos sagrados! –, você, sim,
sacaneará o próximo. Sabatinado pelo vizinho, pelo colega de
departamento e até pelo leitor, você aconselhará não duas, mas quatro,
cinco ou seis noites em Colônia do Sacramento, a melhor cidade da
América do Sul.
Ah! Buenos Aires!
Poucos minutos antes do Stravinski ao ar livre,
no Centro de Buenos Aires, pais vão chegando com suas crianças babonas
de cinco e seis anos de idade. Atiçadas, correm de lá para cá. Crônica
do desastre anunciado? Lá, não. Quando os músicos surgem no palco,
elas sossegam. Crianças cordiais e educadas nem lembram as propagandas
ambulantes de vasectomia que esperneiam, em Maringá, em qualquer
concerto. Quer ser pai? Vá pra Argentina.
Uma vantagem
Único alívio em Colonia do Sacramento? Lá, pelo
menos, você não escuta os berros estridentes das 300 duplas sertânicas
que infestam tua maldita Maringá.
Oh! As gaúchas!
Em Porto Alegre, onde as gaúchinhas de olhos verdíssimos? Azarado que sou, caço à toa e não navego musa alguma. Gorduchas
de varizes azulonas, velhotas leprosas, ciganas de dentes macilentos,
essas, sim, te sorriem a caminho do museu do Iberê Camargo, oferecendo
mil e uma noites de êxtase, em promessas que fariam corar o danado
Bocage.
No coins
Na porta central, prestes a entrar numa igreja chatíssima
de Porto Alegre, a mão tremelicante estendida na tua direção é do
aleijado clamando dinheiro. Esperto, na saída, você escolhe uma das
portas laterais. Lá, um bêbado sessentão e uma aidética cinquentona
também exigem moedinhas. Dinheiro não dou nem tenho peso na consciência – benefício de zanzar somente com cartão de crédito.
Querem meu dinheiro!
Roupas rasgadas, voz chorosa, fedendo a peixe e cigarro paraguaio.
"Alguém me ajuda..."
Rosto encardido dos sessenta anos de cachaça.
"...pelo amor de Deus..."
Mão tremelicando saudades do próximo gole.
"...com dez reais?"
Mais um deles.
Em todo canto de Porto Alegre, um velho cobiça teu dinheiro.
No
Mercado Municipal. Na Ladeira. Na Casa de Cultura Mario Quintana. No
Centro Cultural Erico
Verissimo. Pensa, você, que o inferno é Maringá?
Ô, tchê!
Você mal sai do hotel, o gaúcho te aborda na calçada.
Carros, motos, alguém desafinando o teclado na esquina. Olhar te pedindo – o quê? Suadão, camisa cavada.
Ai, não, mais um?!
Distraído com a buzinada de algum carro cinza, você nem escuta a pergunta do desconhecido e já dispara resposta pronta:
"Não tenho dinheiro!"
Confuso e surpreso, o gaúcho te devolve meio constrangido.
"Ô, tchê, só tô perguntando as horas!"
Criminalidade
Nas areias de Pocitos, gritos de "Deus nos acuda!", "minha nossa!" e "ai, meu Deus!" compõem a trilha da correria no calçadão.
"Pega! Pega!"
Ladrão?
"Pega! Pega!"
Tarado?
"Pega! Pega!"
Até aqui?
Assutados, banhistas desembestam de um lado para o outro. Forte dispara o coração.
O magrelo branquelo vira refém de um grupo e é surrado no meio da areia por dezessete sujeitos.
Com
a sova bem-sucedida, abandonam o corpo e se misturam aos turistas no
calçadão, apressando passos da polícia. Fugir das rodas de pancadaria
nas areias de Pocitos libera mais endorfinas que duas horas de pacíficas
caminhadas.
Cultura
A brasileira magrela, de ossos minúsculos e rosto
chupadão, contempla os débeis traços do "Abaporu". Exposto no museu
argentino, o maior quadrinho da pobre Tarsila.
"Gente, que vergonha..."
Voz grave, mãos masculinazadas, vasta cabeleira nas axilas.
"...nossa maior obra-prima..."
Da blusinha regata, os tantos pelos não te sorriem?
"...tão longe do nosso povo, e não nas paredes do Masp de São Paulo."
Pergunto nome, idade e profissão da moça.
"Micaele, 25 anos, estudante."
"Então, Micaele, o Masp, por outro lado, tem seis Modiglianis, e os argentinos só têm dois."
Caçando de perto, onde os resquícios da beleza feminina?
"Pouco importa a pintura europeia..."
"!"
"...o que vale a pena é valorizar o que é nosso!"
Sabe ela, realmente, o que é um Modigliani?
Não
dá tempo para perguntar. E a moça desembesta a bater pernas entre
outros quadros – todos, evidentemente, melhores que a Tarsilinha.
Na
parede argentina, você encara bem, novamente, o pobre "Abaporu":
primitivo, infantiloide, cru, malfeito, amador, rudimentar. Melhor ficar
aqui mesmo.
Por último, o sol!
Em Porto Alegre, a gorducha loirona contempla o
sol se espreguiçando às margens do Rio Guaíba: "Tchê, é o pôr-do-sol
mais lindo do mundo!", garante, deslumbrada.
Dois dias depois, na
chatíssima Colônia do Sacramento, duas gordas morenonas se espremem
diante do celular, na tentativa do selfie perfeito, diante do Rio da
Prata – mais fácil enquadrar treze luas juntas que aquelas duas
gorduchas: "Esse é o pôr-do-sol mais lindo do mundo!", garantem,
deslumbradas.
Em qualquer lugar do mundo, o sol deita catarses de gordas.
Publicado no Diário (6/3/2016)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário