segunda-feira, 21 de março de 2016

Strikes, rancor, musas e conselhos amorosos


Em Maringá, você conta nos dedos os prazeres da terceira idade: a cervejinha carérrima no Nara's Bar, as tardes de dama e dominó na praça da Pernambucanas, o bailão vespertino no Clube do Vovô e os jogos de malha na Vila Operária. Mas não só desses êxtases vivem os teus velhos. Exímios jogadores de bocha, possivelmente a mais entediante das modalidades esportivas - superando o golfe e o rugby -, os velhos maringaenses também se regozijam com manhãs de boliche.

Em plena quarta-feira, às oito da manhã, risinhos e palminhas ecoam entre pinos derrubados na 9ª edição do Campeonato de Boliche das ATI's (Academia da Terceira Idade). Todas as pistas tomadas. Os mais preparados, de roupas leves. A cada jogada, tênis esportivos arranham solas antiderrapantes. Desconfiados do sistema de contagem eletrônica, alguns velhos fazem questão de registrar num papelzinho o resultado da pontuação. A cada strike, berros e comemorações exaltadas.

Única não-velha sentadinha com os bolicheiros, a menina de doze anos quase não se contém.

"Vim pra acompanhar minha vizinha. Será que vão me deixar jogar?", pergunta Micaela Spagnoli, torcendo mãozinhas e enroscando dedos, acompanhando pinos que descem e sobem - jamais para ela. Sabe, você, o que é passar sede diante do mar?

"Nem um pouquinho?", insiste, preocupada.

Difícil responder. Olhe em volta. A dedicação. A curvatura em cada jogada - não é perigoso depois dos setenta e pouco? Velhos levam a sério o tal campeonato.

"Isso aqui é muito melhor que malha e bocha!", garante um setentão.

Chapéu branco, camiseta regata, peito em mil batimentos cardíacos.

"Esses esportes antigos dão muito trabalho. Tem que ir de um lado pro outro, depois ajeitar as coisas, fica cansativo. Aqui é tudo diferente. Posso fazer muitos pontos..."

Dedão apontando o papelzinho rasurado de jogadas - pontuação: 78.

"...e ficar sentadão, ó, tranquilinho. Que os pinos sobem sozinhos."

Um olho fala contigo, o outro amaldiçoa as jogadas do adversário.

Bendito Piauí

Fora da pista, jovens monitores prestam auxílio, cedem conselhos e estímulos aos derrotados.

Sou atraído por uma voz feminina. Sotaque exótico, com tons ainda mais graves e agudos.

"Vim dí Terésina, nu Píauí."

Como é bom mulher bem acentuada.

"Gostando de Maringá?"

"Adoréi, víu? Mas é túdu díferêntí."

"?"

"Nas festînhás, é tudu múndu convérsándu. I não dánçam cum ninguém!"

Ai, essas dançarinas de Teresina. Olhos castanhos, boquinha vermelha, um metro e sessenta de altura.

"Na minha cidádí, a génti dánça mésmu: Wésléy Safádão, Falamansá e Aviões do Fôrró."

Já pensou? Você, cara, dançando essas coisas? Melhor: nem pense.

"E os homens maringaenses?"

Risão descontrolado. O dedinho de lá para cá indicando jamais. Não saberás. Insisto.

Grandes lábios escancaram sorrisos sacanas.

"Tu tém cértêêêza?!"

Pensando melhor...

"Tu já sábe a réspóóósta, né?"

Lula lá

Deixo a moçoila do forró, saio coletando resmungos rancorosos.

"Aquele Lula é um safado."

"Que nada. Safado é você. Lula mudou nosso País..."

"Mudou mesmo: pra pior. Olha essa crise."

"...e ainda vai salvar a gente. Não é José?"

"Sei não."

"Ele, Cunha, Dilma: tudo ladrão. Pensa que não roubaram? Cadeia neles. Moral neles. Moro neles."

"Mesmo votando no Lula, acho que ele deve ser investigado pelo Moro. Isso eu concordo. E você, José?"

Semblante sem mínimas reações.

"Meu Deus, José, não tem opinião?"
"Sei não. Ó, Benedito, sua vez de jogar."

A vida segue no meio da crise. Sento num canto. Hora de acompanhar o aquecimento de velhos aglomerados numa sala envidraçada. Alguém chega com um bambolê azul e anuncia o próximo exercício.

"Tem que pegar e passar o corpo inteiro por dentro dele, tão vendo?", explica uma moçoila, enfiando-se e contorcendo-se diante do círculo de plástico.

Séria e sisuda, a velha encara duas vezes o brinquedo em mãos. Não é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha? E se travar tudo?

Estimulada pelos colegas não menos jovens, ela respira fundo, cochicha qualquer coisa - benção ou palavrão? - e começa a suar frio. Em dez segundos, o fim da aventura. As palmas febris do coração encorajam o velho ao lado, que, igualmente apavorado, também recebe o bambolê e parece ter certeza de seu fim: entrar ali e jamais sair.

Musa do bambolê


"Aquele outro senhor é muito competitivo", cochicha uma voz levemente apimentada.

Loirinha, vinte e dois aninhos, tênis esportivo de cores berrantes. Você resistiria? Rápido e ligeiro, eu me levanto. É duro, cara, testemunhar tantas musas maringaenses. Em pé, vou salivando cada detalhe, um mais delicioso que o outro. Quer ver, nobre voyeur?

Nome: Débora Padilha.
Calça: cinza e coladíssima.
Cabelo: preso num rabo de cavalo.
Altura: 1,70 m.
Olhos: melancólicos.
Pescoços: à Modigliani.
Ombros: altos.
Pintinhas: não.
Coxas: elegantes.
Risos: autênticos.
Joelhos: adocicados.
Braços: branquíssimos.
Pés: no chão.
Unhas: cordiais.
Lábios: tenros.
Perfume: mescla de azaleias, lírios, begônias.
Apelido: Dedé.
Piercing: no nariz.
Hobby: vôlei.
Tatuagem: frase negra no pulso direito.
O quê: "Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei".
Fonte: Salmo 91, Bíblia.

"Aqui, a gente fica com eles durante o tempo ocioso", explica Débora

"Nessa idade, faz bem ser competitivo?", questiono.

Lá no meio, mais um velho é desafiado - o bambolê tremelicando pavor ou espasmos musculares?

"Qualquer coisa que estimule a prática de exercícios já é ótimo."

E mais não dá para arrancar da nossa loirinha. Que ela, ligeira, corre em direção ao bambolê, é hora de guardá-lo, ajeitar uma cadeira ali e aqui e iniciar nova atividade, desencarrilhando suspense e interrogações - nessa altura da vida, todo aquecimento é um esporte radical.

Exercícios casamenteiros

Sentadona à mesa, ao lado de um japonês quieto e calado, a senhora de 69 anos ignora o aquecimento. Quer mesmo é se jogar na pista.

"Não vim pra perder", anuncia, toda serepele.

Chego distribuindo gentilezas. Milagre do Santíssimo? Miragem destes olhos traiçoeiros? Nunca aparentando quase sete décadas de vida.

A velha se delicia com a risadinha mais graciosa.

"Pensa que é fácil manter essa forma?"

Braços, cotovelos, canelas e pescoço enrugando passados.

"Três vezes por semana, faço exercícios no salão da igreja. E sem falar na hidroginástica. Isso me mantém viva. Meus seis irmãos, que nunca praticaram esporte nem caminhada, já morreram tudo."

"Solteiríssima?", vou sondando.

"Que nada. Casada há 52 anos."

O velho japonês, agora, escancara ouvidos à conversa.

"Qual receita do casamento perfeito?", questiono.

"Muita paciência. Porque vou te contar, viu? Não é fácil viver uma vida assim", aconselha.

Quase em cochichos, o japonês resolve polemizar o diálogo.

"Sabe qual é o verdadeiro segredo do casamento?"

A risadinha escapando no canto da boquinha carcomida pelo tempo - dele e dela.

"O segredo do casamento é ser pobre."

Aplaudindo a resposta do japonês, mãos eufóricas e rosto coradinho, a velha vai ao delírio - a mesma empolgação de assistir, na primeira fileira, os mágicos e malabaristas do circo Tihany.

"Vê o meu caso: sou pobre, trabalhei a vida inteira e não tive tempo de ficar brigando."

"Comigo, minha nossa, a mesma coisa!"

"Com rico é diferente: com tempo livre, termina o casamento e junta com outra, sempre mais nova."

"Pra eles, quanto mais nova melhor."

"Por isso, tô casado há 54 anos."

"Ainda há romantismo?", pergunto ao japonês.

A velha escancara risadona estridente - desespero das noites de horror? O japonês lança um olhar distante, cansado e vencido.

"Olha, tá bem mais ou menos."

"?"

"Pra falar a verdade, não tem mais romantismo, não."

A velha completa os lamentos conformados do último romântico.

"Nessa nossa idade, é mais a companhia que importa, né?"

"Exato: um cuidando do outro..."

"Sei bem como é."

"...até o fim da vida."

Lições preciosas

"Como eu pego nas bolas?", questiona-me uma senhora oitentona, cutucando minhas costas com o indicador.

Reflito um pouco em como ajudá-la. Levanto o indicador, o dedo médio e o pai de todos. E digo que é para colocar nos buracos.

"E cabem?"

"Quase inteiros."

Olhos curiosos desejando novas lições: nunca é tarde para aprender.

"Só enfiar tudo?"

"Sem medo."

"E não machuca?"

"Dor e prazer muitas vezes se completam..."

Risinhos descontrolados e frenéticos.

"...mas não é o caso."

Bochechas corando interrogações, pelinhos morenos eriçados no braço direito.

"Alguma outra dica?"

"Concentre-se nas setas."

"Que setas?"

"No chão, ali, enfileiradas."

"Ah, sim. Agora tô vendo."

"Mire no centro: você está feita."

"E pode com qualquer mão?"

"Prefira a mais firme."

"Olhos fechados ou bem abertos?"

"Bem abertos: jamais perder o mínimo detalhe."

"Do jeito que eu gosto."

E lá vai ela. Na pista, lá longe, alegrinha, desajeitada, inexperiente de quase tudo, não parece sessenta e cinco anos mais nova? Com cuidado, segura a bola de boliche com as duas mãos. Concentrada na própria jogada, posiciona-se diante das setas.

A longa espera da bola espancando a pista causa aflição nos adversários – velhos lançando maldições em silêncio, torcendo pelo pior.

As canaletas eretas, alívio das amadoras, são apenas decorativas para a minha aluna.

Nove pinos derrubados de uma única vez, numa jogada certeira e sem desvios: não é para qualquer um.

Ela comemora, nós comemoramos. Tivesse champagne, ostras, vinho francês, ali nos serviríamos. Justo e merecido. Velhos batem palmas e distribuem parabéns à minha estreante - por dentro, disparam mais maldições e torcem pelo pior.

PUBLICADO NO DIÁRIO (20/3/2016)

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