Sob um sol endiabrado, motoristas disputam as últimas sombras do estádio Willie Davids. Tem buzinada, gestos obscenos e um e outro palavrão. Às 16h45, quase todas as árvores já foram tomadas. De um dos carros, uma senhorinha de uns 70 anos desce afobada. Ligeirinha e serelepe, ela aperta o passo no chinelinho de dedo – correria rumo ao último concerto de Peppino di Capri? Que nada. Às quartas, nem o romantismo afrancesado do intérprete de "Champagne" causaria tanta correria. A atração, ali, são os charques, frutas, cogumelos, verduras e linguicinhas da Feira do Produtor.
Há duas décadas, a aposentada Neuza Zanutto, 75, faz suas compras à beira do estádio, religiosamente às quartas. Ela sempre chega antes das 16h e vai escolhendo, tranquilamente, os pés de alface e rúcula, as frutas, o cudiguim para o filho que mora em Minas, entre outras maravilhas. As compras ficam reservadas, com o nome dela na sacola. Uma hora depois, quando realmente começa a feira, é só passar pelas bancas, pagar a conta e levar tudo embora. Suada e empurrando um carrinho cheio de compras, Neuza, mesmo chegando cedo, teve problemas para conseguir estacionar o carro. "Foi um caos, viu? Passei um stress terrível. E ainda tinha um caminhão, desses de mudança, atrapalhando tudo." Mas a aventura vale a pena. "Acredita que já levei caixas desse tamanhão, ó, de goiabas lá para Uberlândia? Três quilos de goiabas para fazer o meu mousse. Em Minas, você não encontra goiabas assim de jeito nenhum", comenta. Outro madrugador, o empresário Téo Zanin, 52, também faz questão de chegar uma hora antes do início da feira. "Assim, pego os produtos mais fresquinhos. O cogumelo que eu compro aqui chega a durar 15 dias. Se eu compro nos outros lugares, o mesmo cogumelo apodrece em 48 horas", compara.
Entre a mortadela de porco, batata em conserva, bacon e mudas de manjericão, milionários excêntricos e gente do povão seguem circulando entre as barracas. Algumas pessoas, pouco se lixando com o sol, desafiam seus próprios limites em busca dos cobiçados acepipes. A sexagenária mancando, apoiada numa bengala, carrega duas sacolas cheias de milhos e verduras. Ela está suando e parece fazer um esforço tremendo para caminhar – a feira não é sua via cruscis?
Entre a mortadela de porco, batata em conserva, bacon e mudas de manjericão, milionários excêntricos e gente do povão seguem circulando entre as barracas. Algumas pessoas, pouco se lixando com o sol, desafiam seus próprios limites em busca dos cobiçados acepipes. A sexagenária mancando, apoiada numa bengala, carrega duas sacolas cheias de milhos e verduras. Ela está suando e parece fazer um esforço tremendo para caminhar – a feira não é sua via cruscis?
Gay é normal?
No meio de tanta gente, uma amável senhora, com uma prancheta em mãos, vai abordando casais, adultos e idosos. Parece um abaixo-assinado, algo do tipo. Vou me aproximando. Toda elegante, num vestidinho azul, saltinho branquinho e óculos dourados, a senhorinha loirinha conversa um pouco, justifica o motivo da arrecadação de assinaturas e muitas pessoas vão rabiscando seus nomes no papel. Deve ser algo realmente muito bom. Reivindicaria, a doce senhora, a tão esperada reforma política? Tentaria organizar um concerto de Toto Cutugno, com orquestra e entrada grátis, no estádio Willie Davids? Finalmente, eu me aproximo."O senhor gostaria de assinar um abaixo-assinado contra o casamento gay?", pergunta, toda delicadinha e com sorrisinho convidativo, estendendo a prancheta e uma caneta. Quando descobre que eu sou jornalista, a senhora de 60 e poucos anos muda radicalmente sua postura.
"Eu não quero que você escreva uma linha sequer sobre isso, ouviu bem?!", ameaçou, firmemente, a vozona grave e soturna – em seus olhos não brilhavam as chamas furiosas da sarça ardente? "Estou lutando pela minha Igreja Católica! Se o senhor tem filhos, deve me entender. O casamento gay é um erro e eu vou entregar esse abaixo-assinado ao Papa!", bradou, impávida e colossal. Claro que não meti meu nome naquele bolo. Mas a coleta de assinaturas dela é um baita sucesso.
"Casamento gay não é normal, isso não está certo", acredita uma funcionária pública que assinou o manifesto. Aparentando ter uns 50 e poucos anos, ela confessa ser noveleira de carteirinha e diz que está revoltada com a exibição do casal homoafetivo, interpretado por Fernanda Montenegro e Natalia Timberg. "Eu boicotei a novela. Aquilo é nojento demais." Uma técnica em biblioteconomia, de 35 anos, também foi abordada pela engajada senhora e meteu o nome na lista. "Não tenho nada contra os gays. Só assinei mesmo para não entrar em conflito com ela."
Benditas suecas
Quando vai escurecendo, a feira ganha contornos mais sensuais. Encostadinha no muro, uma loirinha transcendental refestela-se com pastel de queijo e sodinha bem gelada. Shortinho jeans, blusinha branca, boquinha pintadinha de vermelho – ai, essas mocinhas de lábios vermelhos. Não tem ela os ombros altos de Liv Ullmann? As coxas portentosas de Anita Björk? Nos olhos, a mesma melancolia de Ingrid Thulin? Quem não daria tudo para ouvir os pensamentos da nossa sueca bergmaniana? A cena é de despertar o apetite, e eu, glutão sem paradigmas, também peço um pastel de queijo com sodinha. Do outro lado da barraca, outra sueca cinematográfica: vestidinho curtinho, olhos verdinhos, uma pintinha bem acima dos lábios. Naquela orelhinha, você não sussurra os versinhos proibidos do danado Bocage? Não entoa, suave, a "Tristesse", do Chopin? Feche os olhos: veja as grinaldas de Hera!, os ramos de videira!, as margens do rio Hebro! Saciadas, as duas mênadas da barraca do pastel encerram suas respectivas contas e, cada uma para um lado, partem para o cortejo báquico, ao som dos tamborins dos coribantes. Quem, ali, não ofereceria bodes, coelhos e pássaros corvídeos à passagem das duas deusas? "Batei palmas, todos os povos" – não é esse o precioso ensinamento do Salmo 47?
Aplaudindo as doces suecas, deixo a barraca de pastel. Passo pelo cego cantador. Ele entoa alguma coisa sobre Deus, uma moda religiosa. Tenho pena do José do Bonfim que não pôde contemplar as duas loirinhas. Seu violão tem um som relativamente bom e sua voz não é afetada por empostações alopradas: o canto de Bonfim, essencialmente triste, é de uma naturalidade tocante. Famoso na cidade, o nosso artista não limita sua agenda de shows às performances gratuitas na Feira do Produtor. "Faço muitos shows em aniversários e lanchonetes", conta.
Bonfim começou a perder a visão aos 11 anos e ficou completamente cego aos 23. Chegou a fazer diversos tratamentos, mas não teve jeito. A retinose pigmentar escureceu sua rotina. Às quartas de feira, ele canta por quatro horas seguidas. Única ajuda, debaixo do banquinho, a garrafinha de água refresca as cordas vocais. Com 59 anos, ele já lançou três CDs, disponíveis a R$ 10: "Jornada Escura", "Sentimento de um Cego" e "Os Pé Vermelho". No intervalo das canções, Bonfim volta e meia passa a mão na cumbuca à sua frente – esperto aos larápios sacanas. "Nunca vi alguém me roubando", garante Bonfim, balançando a cumbuca. Peço que ele cante alguma música própria. E Bonfim começa a executar "Jornada Escura", um épico autobiográfico que aborda a sua trajetória e a de sua família: "Tenho meus filhos lindos / Sei, por ouvir dizer", ele vai cantando.
Deixo o cego cantador. Vou andando. Passo pelos cogumelos resistentes, os tais cogumelos que duram até 15 dias. As pessoas se encontram, dão longos abraços, alguns até arriscam uns flertes mais atrevidos – ou será um maldito cisco? É na feira que as pessoas se informam. Quem nasce, quem morre, quem não está bem das pernas:
"E a sua vó, Carlos, como tá?"
"Ela foi pro hospital. Pegou uma virose."
"De novo?"
"A virose tá feia. Tava todo mundo preocupado que fosse dengue."
"Ai, não acredito. Que dó."
"Tá com risco de hemorragia."
"Minha nossa! E o Antônio?"
"Ah, eu não te contei? Parece que é suspeita de AVC."
"Ai, não. Ele tava tão bem."
"É... a bruxa tá solta por aí."
Últimos românticos?
"Coloque aí que subiu a alface, o milho verde e a abobrinha", comenta o aposentado Luiz Carlos Ruiz, 65, forçando a vista para ver direito meu nome e a foto no crachá. "É a crise: sempre percebo quando os preços sobem. Venho aqui há 20 anos.". A poucos metros dali, na loja de rosas, com flores vermelhas, amarelas e brancas, oferecidas a partir de R$ 1, o casal de japoneses lamenta a queda nas vendas. "Ninguém quer ser romântico com a crise: o pessoal quer é comer, né?", observa Catarina Saito, que trabalha na feira desde 1997.
Deixo a crise de lado e sigo. A índia kaingang, de 19 anos, com um bebê de 3 meses no colo, já desistiu de vender seus balaios coloridos. Volta e meia dá um grito para que seu outro filho maior, de 3 anos, tome cuidado com a rua. Estão todos sujos de terra e cansados. Passo pelo sashimi, pela barraca da banana, pelo caldo de cana e vejo uma mulatinha comprando uma porçãozinha de tilápia no copo (R$ 5). Olhinhos castanhos, roupinha de ginástica, lábios carnudos e um crucifixo douradinho no peito – ó bendito Jesus Cristinho! Nas orelhinhas, mais sinais de devoção: duas pequenas cruzes prateadas brilhando no escuro. Mordiscando um e outro naco de tilápia, a mulatinha vai desfilando entre as barracas - ó mirra mais preciosa!, ó torre de Davi!, ó piscinas de Hesebon!, ó azeite de oliveira puríssimo! Quem consegue se concentrar nas compras, perambulando nesse imenso jardim de delícias? Batei palmas, batei palmas!!
Deixo o cego cantador. Vou andando. Passo pelos cogumelos resistentes, os tais cogumelos que duram até 15 dias. As pessoas se encontram, dão longos abraços, alguns até arriscam uns flertes mais atrevidos – ou será um maldito cisco? É na feira que as pessoas se informam. Quem nasce, quem morre, quem não está bem das pernas:
"E a sua vó, Carlos, como tá?"
"Ela foi pro hospital. Pegou uma virose."
"De novo?"
"A virose tá feia. Tava todo mundo preocupado que fosse dengue."
"Ai, não acredito. Que dó."
"Tá com risco de hemorragia."
"Minha nossa! E o Antônio?"
"Ah, eu não te contei? Parece que é suspeita de AVC."
"Ai, não. Ele tava tão bem."
"É... a bruxa tá solta por aí."
Últimos românticos?
"Coloque aí que subiu a alface, o milho verde e a abobrinha", comenta o aposentado Luiz Carlos Ruiz, 65, forçando a vista para ver direito meu nome e a foto no crachá. "É a crise: sempre percebo quando os preços sobem. Venho aqui há 20 anos.". A poucos metros dali, na loja de rosas, com flores vermelhas, amarelas e brancas, oferecidas a partir de R$ 1, o casal de japoneses lamenta a queda nas vendas. "Ninguém quer ser romântico com a crise: o pessoal quer é comer, né?", observa Catarina Saito, que trabalha na feira desde 1997.
Deixo a crise de lado e sigo. A índia kaingang, de 19 anos, com um bebê de 3 meses no colo, já desistiu de vender seus balaios coloridos. Volta e meia dá um grito para que seu outro filho maior, de 3 anos, tome cuidado com a rua. Estão todos sujos de terra e cansados. Passo pelo sashimi, pela barraca da banana, pelo caldo de cana e vejo uma mulatinha comprando uma porçãozinha de tilápia no copo (R$ 5). Olhinhos castanhos, roupinha de ginástica, lábios carnudos e um crucifixo douradinho no peito – ó bendito Jesus Cristinho! Nas orelhinhas, mais sinais de devoção: duas pequenas cruzes prateadas brilhando no escuro. Mordiscando um e outro naco de tilápia, a mulatinha vai desfilando entre as barracas - ó mirra mais preciosa!, ó torre de Davi!, ó piscinas de Hesebon!, ó azeite de oliveira puríssimo! Quem consegue se concentrar nas compras, perambulando nesse imenso jardim de delícias? Batei palmas, batei palmas!!
Publicado no Diário (29/3/2015)
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