No
coração da cidade, a Raposo Tavares é palco de comédias e tragédias do
cotidiano de Maringá, peças reais que se repetem dia após dia, noite
após noite.
Veja a praça: dezenas de pombas obesas. Meretrizes sexagenárias. Papel de bala, bolacha e chiclete no meio do chão. Um sujeito, nem gordo nem magro, corre com a maleta preta debaixo do braço. Garrafa plástica, lata de cerveja e panfletos com preços promocionais de uma loja de departamento. Uma ruiva que parece ter saído do "Friso de Beethoven", do Klimt, desfila com passos firmes e ligeiros. Barulhos de buzinas, carros importados, carros populares, alguém pede vinte e cinco centavos. "Só vinte e cinco centavos, porque eu tô pedindo, não tô roubando ninguém, não sou criminosa, alguém tem vinte e cinco centavos?" Cinco usuários/traficantes de crack ("craquentos", "noiados", "nóias", "chapados"), próximos a uma banca de revista, conversam sobre qualquer coisa. Cada pivete exibe um celular moderno. Desses com potentes câmeras fotográficas, ideais para o selfie coletivo, certamente com acesso à internet. Os cinco pivetes têm celulares mais modernos que o meu.
Caminhar pela Praça Raposo Tavares, às onze horas da manhã, é perambular por um cenário inquieto. Resolvo sentar. Não chove nem faz sol. Escolho um lugar próximo a um dos pontos de ônibus. Sob o busto do compositor Joubert de Carvalho, duas senhoras cinquentonas conversam alegrinhas:
"Aí um dia, esperando o ônibus, encontrei ela exatamente aqui. Sabe o que ela me disse? 'Nilce, jamais pensei em te encontrar aqui!'. Depois de tanto tempo. Imagina?!"
"E ela, continua gorda?"
"Tá quase explodindo. Engordou ainda mais."
"Jesus Cristo."
"Tenho pena do João. Porque ela é gorda, gorda, gorda..."
"Precisa de operação?"
"...e ele é um pedaço de mau caminho."
"Acha que precisa operar?"
"Não sei. Precisou de tempo para subir no ônibus. Gorda é lenta. Eu entrei rapidinho e sentei no fundo do ônibus, bem longe dela."
"E ela?"
"Nunca mais olhou na minha cara."
Se o busto de Joubert de Carvalho falasse, o mundo não seria mais o mesmo. Casamentos seriam desfeitos. Megaempresários iriam à bancarrota. Primeiros-ministros seriam caçados e certamente Kim Jong-il sofreria um impeachment. Num banco da praça, você é um voyeur, vampirizando as senhoras, moleques, empresários e mendigos.
"Ela é uma safada. Tá grávida do Miguel, não dele."
"Meu Deus. Do Miguel?!"
"Sempre foi safada."
"Eu podia tá matando."
"Eu não tô aguentando mais isso."
"Esse seu pai é um vagabundo."
"Quase perdi a perna."
"Sabe me dizer que horas são?"
"Nunca mais ando de moto, agora só de carro."
"Eu sei que ele é safado. Todo mundo sabe."
"E a polícia, já fez alguma coisa?"
"Alguém me dá vinte e cinco centavos?"
"Bang Bang"
No meio da gritaria, há quem se retire para viajar. Num banco da praça, o pedreiro Josué Reina, 46 anos, estava metido no meio de um violento tiroteio, entre xerifes, garimpeiros, caçadores de recompensa e pistoleiros durões. O barulho nada incomodava sua concentração. "Ler é uma viagem. Parece que eu estou no lugar do personagem. Quando não tô trabalhando, leio dois livros por dia. Os de 'Bang Bang' são meus prediletos", comenta o pedreiro, empunhando o livro "Um Duelo por Dia". Em suas viagens, ele gasta só R$ 2. "Compro tudo ali, na banca de revista."
Com a fome batendo, muitos vão se regalando num dos cachorrões ali perto. O carrinho do Donny Lanches, há quatorze anos no mesmo ponto, de frente para a Avenida Brasil, chega a vender 80 cachorrões, diariamente, de segunda a sábado. O preço é camarada: de R$ 5 (simples, com uma salsicha) a R$ 9 (frango com bacon). "Todo mundo diz que temos o melhor cachorrão da cidade", gaba-se a vendedora Cláudia Bonfim. Ela gosta da praça, gosta de trabalhar ali.Mas nem tudo é perfeito. "Meu único problema é a noite. Quando escurece, aqui não é nada seguro", reclama.
Anã e verruga
Às cinco da tarde, a praça é melancolicamente erótica. A anã, negra, oferece as perninhas magricelas e as mãozinhas miúdas: naqueles noventa e poucos centímetros de perdição, quantos não se perderam a caminho de casa? Sentada no banquinho, lançando olhares maliciosos, uma prostituta sexagenária veste blusona vermelha, chinelão de dedo e saiona jeans. No sorrisão da doce senhora, o que seduz mais? O dentão amarelo e a verrugona na bochecha esquerda, ou as pernonas infestadas de longas varizes azuis? O amor, na praça Raposo Tavares, tem mil e um motivos.
De vinte aninhos, a loira de saltinho vermelho e vestidinho verde caminha em câmera lenta pela praça. Tem as unhas pintadinhas de vermelho – como é bom mulher pintada de vermelho. Traz na mão, certamente mãos perfumadas e banhadas em fragrâncias francesas, uma pasta cheia de papéis, talvez partituras, sim, várias partituras de Bach, partituras dos "Concertos de Brandenburgo" que ela executará ao cello, assim que chegar ao seu apartamento, uma república que ela divide com outras duas estudantes de música, na Zona 7. E mal a moça do vestidinho verde desaparece pela Avenida Brasil, a morena com roupas de ginástica (como é bom mulher com roupa de ginástica) assume a cena: lábios carnudos, olhos castanhos, cabelos encaracolados, cada centímetro do corpo destacado nas roupinhas apertadas. Catatônico, você contempla a tudo embasbacado. Pouco importam as loiras de Renoir, a ruiva do Klimt, os peitos de Delacroix: há mais obras-primas circulando pela praça Raposo Tavares que expostas nas paredes do Louvre.
Lá pelas seis horas, a melancolia erótica é substituída por passos acelerados. Funcionários engravatados, estudantes, senhoras e senhores se apressam a caminho do terminal – jamais perder o último ônibus.
Vai um abacaxi?
"Três por dez e cinco por quinze. Três por dez e cinco por quinze", grita Junior, ao lado de um carro cheio de abacaxis. Ele não costuma fazer ponto na praça. "A fiscalização bate sempre por aqui. Tem que ficar esperto". Com o dia terminando, a última chance para faturar nas vendas. Nos bons tempos, ele vende R$ 800 em abacaxis. Aquela quinta, porém, ele considera um "fiasco". "Só vendi R$ 500. A crise tá fogo, viu?", lamenta. Com medo dos boatos de uma medida radical do governo, Junior retirou suas economias de dois bancos diferentes e está à espera do pior. "Meu pai me aconselhou a tirar o pouquinho que economizei. Na época do Collor, ele perdeu tudo o que tinha. Não quero que isso se repita com a gente."
A poucos metros dos abacaxis, um pai e duas crianças batem bola no meio da praça. O mais velho tem 10 anos; o mais jovem, 2. Os garotos chutam a bola longe à beça, é preciso correr de um lado para outro. Com a respiração ofegante e a bola em mãos, o menino mais velho diz que adora brincar na praça. Mesmo com apenas 10 anos, ele tem consciência que o local precisa ser melhorado. "É sujo, né? Eu queria um parquinho, aqui. Com playground, balanço, escorregador e espaço com areia e um campinho de futebol."
A mulher volta a gritar por vinte e cinco centavos. Três garotos de traços indígenas, com menos de dez anos de idade, conversam entre si, agachados e concentrados, num dos bancos da praça. O trio divide, igualmente, as tantas moedinhas arrecadadas de esmola durante a jornada de trabalho. Ao lado, pombas obesas ciscam o chão riscado.
Bafão de pinga
Às nove horas da noite, a praça não tem o erotismo das cinco da tarde nem a correria do meio-dia ou do fim de tarde. Alguns rostos cansados caminham, espertos aos traficantes e viciados, rumo aos últimos ônibus. Sob o efeito do crack, jovens magrelos perambulam de lá para cá: ninguém mexe com eles nem eles mexem com os transeuntes. Com bafão de pinga e olhão vidrado, uma garota de uns trinta anos, magrela e negra, toda tatuada, entra na banca de revista. Ela tem um celular caro pra danar. Compra quatro cigarros avulsos por R$ 1 e guarda o troco num bolso na cintura, junto com o punhado de pedras de crack.
"Eles compram cigarros o dia inteiro. É pra rebater com a droga, né?", explica Wilson Tazima, proprietário da banca de revistas. Ele diz que a convivência com os viciados e traficantes, ali, é tranquila. "Quem é perigoso, mesmo, são os bandidos de outros bairros. Eles vêm para cá e assaltam sem dó", comenta.
Polícia natalina
"Tá vendo como à noite é tudo quieto? Isso é bom para os bandidos", reclama Rosely Martins, 36, que trabalha como caixa numa farmácia, de frente para a praça. Há mais de dez anos no local, a farmácia teve que mudar o horário de funcionamento por causa dos assaltos. "Passamos a fechar uma hora mais cedo, às nove. Tivemos que nos adaptar. O pessoal usa droga e dá nisso: violência. Para piorar, você tá vendo, agora, algum policial nas ruas, ó? A polícia só aparece quando é final de ano", diz a moça, olhando para a praça.
Quando escurece, a praça é só silêncio. De museu a "Bang Bang", de viciados a prostitutas decadentes, de crianças a vendedores de abacaxis, a Raposo Tavares é palco das mil e uma histórias da comédia humana maringaense.
Publicado no jornal O Diário (23/3/15)
Um comentário:
Um retrato fidedigno, bem humorado e repleto de inferências de um local tradicional da nossa bela Maringá. Parabéns pelo texto! Abraços
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