domingo, 2 de outubro de 2011

Entrevista - Milton Hatoum

"Sou viúva, meu filho mais velho mora em São Paulo, os outros em Maringá. Se eu pudesse, também moraria em São Paulo. Porque gosto muito de dançar. Em Maringá é mais difícil. Não sabe como é uma cidade pequena? Vão me chamar de velha sirigaita, ou de viúva assanhada", escreveu Milton Hatoum, numa deliciosa crônica, publicada no Estado de S. Paulo: lá está Maringá, imortalizada na obra do maior romancista brasileiro vivo.
Aos 59 anos, o amazonense Milton Hatoum chega a Maringá, nesta quarta-feira, na Semana Literária do Sesc, com uma trajetória literária, que é, ao mesmo tempo, gigante e concisa. São apenas quatro romances publicados, "Relato de Um Certo Oriente" (1989), "Dois Irmãos" (2000), "Cinzas do Norte" (2005), "Órfãos do Eldorado" (2008), além de "Cidade Ilhada" (2009), primeira compilação de seus contos.
Dos romances, os três primeiros arrebataram um Jabuti. "Cinzas do Norte" fez a limpa e foi contemplado, também, com os prêmios Bravo!, APCA e Portugal Telecom: não deu para mais ninguém.
Autor tardio, Hatoum publicou "Relato" apenas aos 37 anos. Quando olha para trás, ele não se arrepende nem um pouco de ter demorado tanto para dar seu pontapé inicial na literatura.
"O romance é a arte da paciência. Não me arrependo de não ter publicado um texto antes do ‘Relato’. Seria apenas um ato de vaidade, inconsequente e fútil como todo gesto excessivamente vaidoso", comenta, em entrevista concedida por e-mail.
Suas histórias, vertidas para dez idiomas e publicadas em catorze países, trazem uma prosa poética delicada, com uma verve própria arrebatadora. Embora mitifique Manaus na maioria de suas histórias, Milton Hatoum rechaça veementemente o rótulo de escritor regionalista.
"A cidade de Manaus, a paisagem do rio Negro e certas particularidades regionais têm um papel importante e até decisivo na caracterização dos personagens. Mas isso nada tem a ver com o regionalismo", desconversa.Prestes a lançar um novo livro, com o título provisório de "O Lugar mais Sombrio", o autor quer mesmo encerrar esse papo regionalista.
Desta vez, seu romance será ambientado na Paris do final da década de 1970. "É um livro sobre exílio e paixão em Paris", adiantou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Ao Diário, Hatoum fala sobre seu fazer literário, seu estilo próprio e aconselha: "Aprender a escrever reside na prática da escrita, na assimilação do que já foi escrito".
Você escreve pelo prazer de escrever?
O desejo de escrever é uma espécie de comoção, de arrebatamento. Esse desejo está intimamente relacionado com a descoberta de um mundo inventado, que é o vetor da prosa de ficção. Há momentos de intuição, ou inspiração, que são compartilhados com a reflexão sobre o ato de escrever. Essa combinação permanece ao longo da narrativa, depois corrijo e reescrevo o texto várias vezes, até a exaustão.
Como se chega à técnica do romance?
A leitura de bons romance antecede a escrita. Escrever significa, antes de mais nada, saber ler. Os grandes romances nos ensinam a lidar com estratégias narrativas que envolvem questões técnicas e fundamentos teóricos sobre a arte da ficção. No ‘Grande Sertão: Veredas’, o narrador Riobaldo diz algo assim: ‘Aprender a viver é que é o viver mesmo’. De um modo análogo, aprender a escrever reside na prática da escrita, na assimilação do que já foi escrito.
Quando se deu conta de que tinha uma voz própria?
Você encontra sua própria voz quando descobre o texto que está escrevendo. Cada romance é uma forma de aprendizagem e de desafio. A voz própria tem muito a ver com a experiência do narrador, que, de algum modo, expressa a inquietação do escritor. Quando comecei a escrever o ‘Relato de um certo Oriente’, percebi que podia inventar um microcosmo, com situações e conflitos que seriam dramatizados por personagens. O mais difícil é encontrar a voz e o tom do narrador, que é uma questão central na prosa de ficção.
Você demorou para publicar seu primeiro romance. Esse tempo foi essencial ou você se arrepende: deveria ter lançado um romance mais cedo?
Demorei porque tudo o que tinha escrito antes do ‘Relato’ era superficial, mal cabia numa crônica. A escrita depende da experiência de vida e de leitura, que são inseparáveis. E há também o tempo de espera, o tempo que filtra essa experiência e dá ânimo aos narradores. O romance é a arte da paciência, da sedimentação de uma longa reflexão sobre questões que nos inquietam. Não me arrependo de não ter publicado um texto antes do ‘Relato’. Seria apenas um ato de vaidade, inconsequente e fútil como todo gesto excessivamente vaidoso. Por isso demorei a escrever o ‘Dois Irmãos’, que é meu romance lido e conhecido. A mesma coisa aconteceu com o ‘Cinzas do Norte’, publicado em 2005, mas cujo esboço data de 1980, quando eu morava na Espanha.
Você sempre renega o rótulo de escritor regionalista. Mas, na sua literatura, você não identifica nada de regionalismo?
Há dezenas de dissertações, teses e ensaios sobre o meu trabalho, mas os poucos que abordam esse tema, expandem o conceito de regionalismo e preferem tratar da relação entre o local e o universal. Ou seja, a partir de uma situação local ou regional, a ficção alcança uma dimensão universal. Meus romances são ambientados na cidade de Manaus, que é quase uma personagem do ‘Dois Irmãos’. Alguns contos de ‘A Cidade Ilhada’ são ambientados em Barcelona, Paris e na California. Mas para um resenhista apressado ou de olhar turvo, um romance ambientado na Amazônia é rotulado de regionalista. Algo do Amazonas está latente nos meus romances, mas o que eles abordam são dramas e conflitos familiares, trajetórias de vida e destinos de personagens. Eu não poderia abstrair Manaus dessas narrativas, pois nasci e passei a infância e uma parte da juventude lá. Acredito que a cidade de Manaus, a paisagem do rio Negro e certas particularidades regionais têm um papel importante e até decisivo na caracterização dos personagens. Mas isso nada tem a ver com o regionalismo ou com o pitoresco, e sim com a composição do romance.
Entrevista publicada no Diário em 13/09/2011.

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