Publicado no jornal O Diário (6/12/13)
Não sei o nome do cara. Sei que se mudou para o apartamento do lado há pelo menos cinco meses, e transformou a minha vida num inferno. O desgraçado faz parte de uma dessas duplas sertanejas - o que mais tem nessa cidade são duplas sertanejas. Todo sábado de manhã ele abre a goela, junto com outro desgraçado, berrando, em agudos estridentes, coisas do Michel Teló e do Fernando & Sorocaba.
A falta de técnicas e sua voz empostada é o que menos incomoda – nenhum desses pelegos sabe cantar com o mínimo de decência. Sou pianista profissional há quatro décadas, nunca vi a música brasileira tão decadente. Com o sertanejo universitário, os bares cancelaram as minhas temporadas. Quer dizer, me obrigaram a tocar essa escória, e eu recusei, claro.
Um dia, ele bateu na minha porta. Explicou que era o vizinho do apartamento do lado, e que me ouviu, ao teclado, executando uma “baladinha tão tocante”. Aquilo me irritou de uma forma estranha. A “baladinha tão tocante” que o imbecil me ouviu tocando era “Dammi I Colori”, uma das minhas árias favoritas da “Tosca”, ópera do Puccini, compositor clássico italiano. Ultimamente, sempre que eu voltava de uma entrevista de emprego, ligava o teclado e tocava alguma ária do Puccini. Eu tocava num teclado ordinário, porque o meu piano elétrico Yamaha, o piano que meu pai parcelou em quase dois anos e me deu de presente no Natal de 1995 – o único presente de Natal da minha vida –, o piano elétrico eu tive que vender. Mas isso eu não falei para o sertanejo. Quem falou, naquela hora, foi ele. Disse que a banda de apoio acabava de perder o tecladista. Ele estava à procura de um instrumentista à altura do antigo. “Você tem o perfil ideal para tocar sertanejo com a gente”, disparou, antes de me convidar ao seu apartamento. Só podia ser brincadeira.
Respondi que estava ocupado, mas ele insistiu à beça. Concordei em passar rapidamente por lá, dali a uma hora. No horário combinado, bati à porta dele. O sertanejo me recebeu com um sorrisão - além de tudo, tinha um jeitão afeminado. Disse, novamente, que nunca ouviu uma “baladinha tão tocante” quanto àquela música que eu estava tocando. A ignorância dele começava a me irritar profundamente.
“Só César Menotti & Fabiano conseguem fazer baladas tão boas assim”. Tenho que me controlar, pensei. Mas ele insistiu no assunto. Ele falava muita porcaria. “Música clássica me dá sono. Bom mesmo é o arrocha”, continuou.
O sertanejo tirou o violão do tripé, que estava ao lado o sofá. Falou que iria cantar uma música própria. Eu conhecia aquela música. Era aquela do “arrocha, arrocha, arrocha”. Todo o dia ele ensaiava aquela música, empostando a voz nos agudos do refrão: “arrocha, arrocha, arrocha”. Ele e outros pelegos me tiraram do mundo da música. Ele e os malditos do “arrocha, arrocha, arrocha”. Ele estava concentrado, cantava com os olhos fechados, empolgadíssimo com a pronúncia de cada verso. Ninguém tinha me visto entrar naquele apartamento. Levantei da cadeira, peguei o tripé. E, de uma só vez, meti a base de ferro do tripé no rosto do “arrocha, arrocha, arrocha”. Certeiro: o suficiente para derrubá-lo de queixo no chão. Aí começou a diversão. Com força, continuei a enfiar o tripé no meio da fuça dele. Foi uma, duas, três, dez, trinta vezes, e já ia metendo nas costas, pernas, barriga, meti até perder a força nos braços: o rosto dele era um lodo de sangue, sem dentes na arcada dentária. Notei que a perna direita tinha uns espasmos engraçados. Voltei com o tripé e carimbei, sem dó, a cara dele por mais uns trinta minutos. “Arrocha, arrocha, arrocha”. Eu, sim, sou o rei do arrocha.
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Um comentário:
mto bom
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