“Bolchevique! Bolchevique! Bolchevique!”, acusou-me o sujeito bigodudo e gordo, com o dedo em riste. O Bocage era tudo o que eu sempre quis, com o fado melancólico do quarteto lusitano. Os poucos bêbados, as garçonetes e as paredes soturnas do Bocage pareciam girar, enquanto a soprano recitava alguns excertos d’Os Lusíadas, acompanhada pelo timbre estridente da guitarra.
O sujeito se aproximava.
Debaixo do braço, pasta encardida e caderno velho. Jornais macilentos colados sobre as páginas. Dizia-me, do pouco que eu conseguia ouvir, algumas datas e nomes russos. Tcheckov precisava de alguém na fábrica. Mas ele não voltará para aquele inferno nunca mais. Comunista, Tcheckov, nessa altura do jogo? Tentei continuar a conversa. A colheita e o carteado. Olhava-o, mas já não ouvia. A temperatura havia consumido suas pedras de gelo; as mulheres, a bebida. A gola desarrumada contrastava com o cabelo alinhado.
E já era melancolia demais.
Educado, agradeci a cerveja. Sorri ao deixar o dinheiro. Ele empurrou de volta. Em pé, me segura o braço e abre a pasta. Três canetas caem. Devolvo sem algum agradecimento os panfletos subversivos. Muito texto, poucas fotos. Luto contra o espirro, mas ele sai mesmo assim e eu limpo minha mão na camisa branca. Crônicas literárias narram o encontro do militante colombiano, Passos Aguiar, com um agitador cultural, no meio da posse de Gorbachov, em 12 de Março de 1985. Não sei russo, confidenciaria. Não sei quem é o agitador nem o tal Aguiar.
Estou aqui, estou em Lisboa, estou definhando. E só.
Estou definhando moralmente, intelectualmente e socialmente.
Pediríamos outra bebida e o sujeito me pagaria outro drinque. Falaríamos sobre linguística, poesia e, talvez, até desabafássemos sobre o sexo, que sempre precisa ser desabafado nesses lugares estranhos, desproporcionais, angustiados. Criticaríamos as mulheres, seríamos grandes amigos.
Era uma reunião plenária do Comitê Central do Partido Comunista analisada sobre cinco ou seis literatos e intelectuais alternativos. O indicador atabalhoado do gordo apontava a foto: cinco personalidades russas. A morena de olhos verdes, ele apontava, quase em segundo plano, aqui, quase desfocada: Lá estava Carolina, bem atrás do escritor que eu nunca ouvira falar.
Eu seguia mais rápido por aquela Lisboa encardida, em que as pessoas possuíam cabeça de galo e corpo de bacalhau. E não sorriam. “Carolina é só uma questão de tempo”, gritava o gordo, tresloucadamente.
Subíamos correndo, eu e o acusador, por entre a D. Dinis; passávamos pelas putas; banhávamo-nos às margens do Tejo e escalaríamos sem dificuldade a Torre do Tombo. O acusador nunca me alcançaria. Talvez até chegasse perto, com seus dedos escapando da gola da camisa. Quase.
O sujeito se aproximava.
Debaixo do braço, pasta encardida e caderno velho. Jornais macilentos colados sobre as páginas. Dizia-me, do pouco que eu conseguia ouvir, algumas datas e nomes russos. Tcheckov precisava de alguém na fábrica. Mas ele não voltará para aquele inferno nunca mais. Comunista, Tcheckov, nessa altura do jogo? Tentei continuar a conversa. A colheita e o carteado. Olhava-o, mas já não ouvia. A temperatura havia consumido suas pedras de gelo; as mulheres, a bebida. A gola desarrumada contrastava com o cabelo alinhado.
E já era melancolia demais.
Educado, agradeci a cerveja. Sorri ao deixar o dinheiro. Ele empurrou de volta. Em pé, me segura o braço e abre a pasta. Três canetas caem. Devolvo sem algum agradecimento os panfletos subversivos. Muito texto, poucas fotos. Luto contra o espirro, mas ele sai mesmo assim e eu limpo minha mão na camisa branca. Crônicas literárias narram o encontro do militante colombiano, Passos Aguiar, com um agitador cultural, no meio da posse de Gorbachov, em 12 de Março de 1985. Não sei russo, confidenciaria. Não sei quem é o agitador nem o tal Aguiar.
Estou aqui, estou em Lisboa, estou definhando. E só.
Estou definhando moralmente, intelectualmente e socialmente.
Pediríamos outra bebida e o sujeito me pagaria outro drinque. Falaríamos sobre linguística, poesia e, talvez, até desabafássemos sobre o sexo, que sempre precisa ser desabafado nesses lugares estranhos, desproporcionais, angustiados. Criticaríamos as mulheres, seríamos grandes amigos.
Era uma reunião plenária do Comitê Central do Partido Comunista analisada sobre cinco ou seis literatos e intelectuais alternativos. O indicador atabalhoado do gordo apontava a foto: cinco personalidades russas. A morena de olhos verdes, ele apontava, quase em segundo plano, aqui, quase desfocada: Lá estava Carolina, bem atrás do escritor que eu nunca ouvira falar.
Eu seguia mais rápido por aquela Lisboa encardida, em que as pessoas possuíam cabeça de galo e corpo de bacalhau. E não sorriam. “Carolina é só uma questão de tempo”, gritava o gordo, tresloucadamente.
Subíamos correndo, eu e o acusador, por entre a D. Dinis; passávamos pelas putas; banhávamo-nos às margens do Tejo e escalaríamos sem dificuldade a Torre do Tombo. O acusador nunca me alcançaria. Talvez até chegasse perto, com seus dedos escapando da gola da camisa. Quase.
“Bolchevique! Bolchevique! Bolchevique!”, acusou-me o sujeito gordo com o dedo em riste. Foi a última coisa que eu consegui ouvir, antes de receber dois tiros e ser arremessado às margens do Tejo.
7 comentários:
mas um Mayer Guiznburg....
"Estou aqui, estou em Lisboa, estou definhando. E só.
Estou definhando moralmente, intelectualmente e socialmente."
GAIOTO(2009)
Como sempre excepcional, ou melhor sensacional, sensacional Alexandre Gaioto.
Wil Scaliante
Muito bom Gaioto.
Gostaria de te fazer uma proposta grande senhor Alexandre. Fiz uns desenhos ilustrando seus contos, queria te mostrar qualquer dia destes, para ver se aprova. Enquanto isso acompanhe meu blog.Valew.
Estimado Alexandre, gostei de ler o teu conto. Tu tens talento. Portanto, gontinue assim e força, pois o caminho é mesmo esse.
Cara, esse conto me levou bruscamente
a uma viagem a gélida Russia e seus
camaradas socialistas, senti o perfume de tal cortesã, e o gosto forte da vodka barata, só não fui testemunha ocular desse crime as margens do Tejo, porque fiquei pra beber a última dose.
um ultrajante descritivo texto que ame remete a imaginar coercitivamente a cena. Parabéns, é só o que posso me atrever a dizer...
de seu amigo se é que posso assim me apresentar REnato;;;
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