No mercadinho Camarada, a área destinada ao açougue, com suas paredes brancas e facas dispostas em cima das mesas, tinha 30 metros. Dentro daquele espaço, um espaço generoso para apenas um açougueiro desossar carnes durante três horas por dia, era possível contemplar os clientes e as estantes de produtos de limpeza, caixas de leite, sabão em pó, as geladeiras abarrotadas de refrigerantes, os freezers com comidas congeladas. A primeira parte da jornada era ali, trajando galochas, avental, roupas brancas. A segunda, com as carnes já desossadas, era mais prazerosa: no balcão, lidando diretamente com as pessoas, estendendo pacotes de carnes, ouvindo críticas e elogios, conversando sobre as aspirações e frustrações da clientela. Dos 13 aos 18 anos, Rogério Aparecido Bernardo encarnou o açougueiro do mercadinho com paixão. Descobriu, atrás do balcão, que 60% dos moradores de Ângulo gostam de bisteca e 20%, de linguiça. E que mulheres são incumbidas de comprar as carnes de segunda a quinta, enquanto os homens, religiosamente às sextas, vão pessoalmente ao mercado para adquirir as carnes do fim de semana. Mas não eram as estatísticas privilegiadas dos hábitos gastronômicos dos conterrâneos que o fascinavam. Gostava do contato com o público, de ajudar os clientes, de ouvir seus desabafos. Decidiu, no meio do mercado, virar político.
Concomitantemente à jornada no açougue, Rogério graduou-se em Administração e, em seguida, disputou uma cadeira na Câmara dos Vereadores. "Fui o mais votado da história da cidade, com 187 votos, e depois cheguei à vice-prefeito", diz, sentado em um banco na praça da Prefeitura de Ângulo, enquanto acena para o motorista de um Gol branco em resposta à buzinada e ao grito de "Ôôô Rogééério!".
Aos 34 anos, o prefeito Rogério Aparecido Bernardo conhece todos os 2.969 moradores de Ângulo. A cada três minutos na praça, alguém berra seu nome e, carinhosamente, acena de carros e caminhonetes. É abordado, ainda, por dois sujeitos cheios de papéis que analisam os buracos de algumas ruas do município, e pede que a dupla encaminhe o relatório para seu e-mail, e por uma simpática senhora que o interpela para reclamar de uma árvore no quintal de casa. "Me ajuda, Rogério. Se dá um pé de vento, essa árvore cai pra cima de mim e derruba meu barraco." Cordial e atencioso, ele promete ajudar a moradora. "Vou mandar alguém lá na sua casa, Dona Terezinha. Não se preocupe." E a senhora segue rumo aliviada, não sem antes agradecer a atenção do prefeito que dá expediente no meio da praça, numa quarta-feira à tarde, enquanto posa para o fotógrafo do Diário. "Eu amo essa cidade. Minha vida política pode ir adiante, mas eu nunca sairei daqui. Em cidades grandes, como Maringá, é muito difícil um político ficar em plena praça e conversar com as pessoas", comenta.
Ângulo deixou de ser distrito para virar cidade em 1990. A maioria dos moradores trabalha em Maringá, em supermercados, açougues, escritórios, lojas de roupas e sapatos. E há quem trabalhe, também, em um parque aquático em Iguaraçu, onde cerca de 10% dos 87 funcionários são de Ângulo, sem contabilizar as contratações temporárias nos finais de semana. São poucos os que trabalham e vivem em Ângulo que, com seus 106,21 km, pode até parecer pequena para os motoristas que cruzam a PR-317 e não avistam arranha-céus nem qualquer construção imponente, mas, para orgulho dos moradores, é uma cidade maior, inclusive, do que alguns países, como Nauru (21 km²) e Tuvalu (24 km²), na Oceania, e San Marino (60 km²), na Europa.
Os atrativos da vida noturna de Ângulo são o Espetos Bar, que serve torre de chope, a Lanchonete do Julião, com pizzas e porções, e a Sorveteria da Viviane, com opções de picolés. À noite, moradores de todas as idades se unem na praça da igreja São João Batista. Ali, quando garoto, aproveitando as locuções que o dono de uma lanchonete fazia entre uma canção e outra, Rogério mandava, por escrito, declarações românticas às moçoilas, dedicando-lhes canções de Chitãozinho & Xororó, e esperava, ansioso, a vinda triunfal do carro da "Explosão do Amor", anunciando no microfone suas intenções amorosas. "Eu fui um romântico, né?", lembra, com a risada que só os grandes apaixonados sabem dar.
Romantismo, hoje, só com a esposa, a farmacêutica Terezinha, 30, com quem teve o filho Matheus, 2. Residindo com a família em um sobrado a 150 metros da prefeitura, Rogério vai trabalhar todos os dias com o veículo oficial. Raramente faz o percurso a pé, seguindo o exemplo da maioria de seus conterrâneos, que, em Ângulo, preferem passear em seus próprios meios de transporte. Metade dos moradores, de acordo com o IBGE de 2015, tem veículos próprios: 48% preferem os automóveis; 19%, as motocicletas; 13%, as caminhonetes; e 0,85%, os caminhões trator.
Filho de um mestre de obras e de uma trabalhadora rural, Rogério ainda hoje volta com frequência ao endereço onde atuou como açougueiro. Há três anos, sua família adquiriu o mercadinho e fez uma série de modificações estruturais para que o local se transformasse no mercado Paladar, sob a administração de sua mãe e com o irmão assumindo a desossa das carnes. É de lá que saem os bifes dos churrascos que unem a família e os amigos nos finais de semana. É uma rotina simples e de alegrias genuínas, completada por uma e outra ida à praça da igreja, onde jovens sonham com os dias em que Ângulo terá McDonald's e dezenas de casas noturnas - inclusive de rock. Os mais velhos, na mesma praça, almejam um dia receber ali o show do rei Roberto Carlos, e se isso não acontecer – o rei, realmente, é um tanto complicado –, eles já vão ficar satisfeitos com bailes de gala intermináveis e jantares italianos em trattorias que terão fachadas brilhantes, com detalhes verdes e vermelhos, iluminando a pacata Avenida Brasil.
Publicado no Diário (5/2/17)
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