O escritor português António Lobo Antunes já escreveu em "Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo" que "o inferno consiste em lembrarmo-nos a eternidade inteira". É - e será - assim, infernal, lembrar que a memória, traidora, me passou o pé no último domingo, em São Paulo, no concerto do cavaleiro Elomar Figueira Mello. Trocando os horários, chego no auditório Ibirapuera com meia hora de atraso, Elomar já no palco, acompanhado pelo seu filho, João Omar. Ambos munidos de seus violões.
"Mas o show não era às 20h?",indago, surpreso, à moça da bilheteria. "Não, senhor. Às 19h". Disparo um palavrão qualquer, corro para as duas únicas poltronas vazias dos 800 lugares do auditório: uma para mim, uma para a namorada. Perdido, já naquela hora, um terço do concerto.
Elomar, aos 74 anos, carregou seus 800 cavaleiros para um concerto fabuloso. A voz está segura, firme, um "trovejo", como diz o próprio compositor; o violão, impecável. Percorrem os dedos, "enforcando o pescoço da viola", com uma intimidade invejável. Cada acorde sem trastejar. Um mestre, de fato.
Cantando sobre o sertão profundo, em constante diálogo com a Idade Média, o "Príncipe da Caatinga", como definiu Vinícius de Moraes, dedicou boa parte da apresentação às sua árias sertânicas - uma definição elomariana para as árias de suas óperas, que também versam sobre a caatinga.
Elomar, além de compor o cancioneiro brasileiro, com "Campo Branco" e "Arrumação", também se dedica à música erudita. Ao todo, o cantor e compositor gravou um total de 15 discos, entre 1972 e 1995, mergulhando em óperas, concertos e canções.
Bem humorado, Elomar fez do concerto um stand-up, arrancando gargalhadas com seus causos entre uma canção e outra. "Eu não gosto de fazer shows, não. Por isso mesmo, cobro caro. Mas aí tem esses artistas que cobram ainda mais caro, e o meu caro, no fim das contas, sai baratinho. Então, tenho que vir tocar", contou.
Na plateia, alma alguma teve coragem de fotografar ou filmar a apresentação. Entrando no teatro, os funcionários já alertavam sobre as exigências do recluso baiano. Na fileira à minha frente, um sujeito teve a façanha de fotografá-lo. De fininho, sacou a câmera do bolso, mirou em direção ao palco, e pimba! Lá veio o segurança pedindo que ele desligasse a máquina. Elomar provavelmente ficou desfocado -sem tempo, o sujeito, para fazer um enquadramento caprichado. Mas lá está Elomar, capturado pela lente do fã sortudo.
Risos surgiram novamente no final da apresentação, quando o baiano pediu à platéia que cantasse "Arrumação" junto com ele. "Quando faço show, eu gosto de cantar minhas músicas. Afinal, o cachê é meu. O povo fica batendo palma, cantando (Elomar, sentado, balança seu corpo para a esquerda e para a direita, forçando um sorriso débil no rosto). Mas, nessa, todos que sabem a letra podem cantar comigo", convida, entre risos.
"Tão Tarde e Nem Sinal", uma das árias mais belas de Elomar, trecho da ópera "A Carta", foi uma das preciosidades do roteiro. "Gabriela" e "Rapto de Juana do Tarugo" comprovavam a complexidade poética e musical elomariana. É essa complexidade que atrai um punhado de estudantes de história, letras, música e antropologia da graduação ao doutorado, de diversas universidades do País.
Com ingressos a preços populares (R$ 20 / R$ 10), jovens, idosos e famílias, todos reunidos na platéia como numa confraria. Um encontro para privilegiados, que escutam das variações dialetais da língua portuguesa as confissões do sertão profundo.
De arrepiar é a "Cantiga de Amigo", balbuciada do início ao fim pelos 800 seguidores de Elomar. De arrepiar é ouvir "Campo Branco", que chega a marejar os olhos de qualquer peão. Elomar deixa o palco com dificuldades. Todo mundo grita sua música favorita. Que ele volte. Cante mais. Nunca mais saia dali. Faltaram ainda "Curvas do Rio", "O Pedido", "O Peão na Amarração". Que venha o próximo, mestre.
Publicada no jornal O Diário (07/02/2010).
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