segunda-feira, 4 de junho de 2012

Bob Dylan, um canalha dos nossos

Diga o que quiser. Que ele está rouco, que a voz não é a mesma. Que é antipático - nem cumprimenta o público! - e ainda muda radicalmente a forma de cantar suas canções. Acuse-o - vai, o dedo em riste - de ser fanho, de estar velho e muito provavelmente gagá - que fotos são aquelas, minha nossa, dele andando em Copacabana, debaixo dum calor infernal, de gorro na cabeça, jaqueta, botas de cowboy e óculos escuros? Diga o que quiser. Mas Bob Dylan é um mito, um deus.
E mesmo com a voz fanhosa, mesmo ignorando os fãs sentados na sua frente, mesmo exibindo a capacidade camaleônica de suas melodias, o mito domina, como poucos, o manual do blues, a bíblia do rock.

Da vigésima quinta fileira, a poucos metros do palco, vi deus dar as caras no Credicard Hall, em São Paulo, no sábado. Ele, em pé. Comportado, o público acompanha contido: não fossem as malditas fileiras de cadeiras. Mas não dá para segurar. Já na segunda canção, "Don’t Think Twice, It’s All Right", sou tomado por uma felicidade de criança, uma histeria beatlemaníaca. Levanto, num salto da cadeira, ergo meu copão de cerveja, e dou um berro daqueles, para azar do pelego sentado na fileira da frente: um grito vindo da alma.

Daí para a frente, o que fazer para parar o tempo? Perfeito seria nunca mais sair dali. Trancafiados eternamente no show de Dylan. Há romantismo, dum amor que dói fundo, em "Love Sick" - canção que ainda não havia sido tocada em sua passagem no Brasil.

Aos fãs de longa data, os clássicos "Tangled Up In Blue", "All Along The Watchower" e "Like a Rolling Stone" foram tocados com maestria, num arranjo de rock, num som alto, com direito a algumas agachadinhas de Dylan atrás do teclado e, principalmente, durante os solos de gaita: nem deus estava se contendo, contorcendo as pernas, empolgado com a sonzeira.

No palco, quem diria, deus é um canalha. Aquela voz grave, rouca, balbuciando "Things Have Changed"e "Beyond Here Lies Nothing", arrancava suspiros das mocinhas e gritos viscerais dos machões. Dylan, um crápula dos nossos.

Quando encerrou o show, o mistério. Voltaria o mito, para um bis? Os seguranças, separando os setores do teatro, começam a se dispersar. Soldados debandando do campo de guerra, abrindo uma brecha para a plebe no fim da apresentação.

Berro à namorada, puxando-a pelo braço, atravessamos correndo uma fileira inteira de pés, pessoas, desculpas, perdão, e corremos, ainda mais, para a frente do palco. Se vier, Dylan, ali, respirando no nosso cangote. Treme, o chão. As pessoas esgoelam-se: Dylan, Dylan, Dylan. Tão perto, aproveito para torrar o pouco que sobra da voz clamando por "Forever Young". Quatro pessoas ao meu lado aderem ao pedido. E Dylan volta. Tenho certeza que até esboçou um sorriso, olhando debaixo do chapéu seus súditos em estado de graça. Bonita, a afinada berreira coletiva. Arrepiam os pelos do braço. Capaz de pular pela goela, o coração.

Quando retorna, Dylan começa a cantar. Vem até com solos de violino. Não é "Forever Young". Tento compreender, em vão, qual é a música. Só no refrão reconheço, e saio entoando a clássica "Blowing in the Wind" - que ficou fora dos demais shows no País. Ovacionado, Dylan abandona o palco com seus comparsas de rock e blues. Deixo São Paulo com a alma lavada. Aos 24 anos, depois de ver deus tão de perto, já posso morrer em paz.

Publicada no jornal O Diário.

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