segunda-feira, 21 de março de 2016

Turistando Fernando Verissimo

Depois de flanar pelo Parque Farroupilha, ainda suado de bater pernas entre árvores – algumas destroçadas pelo recente temporal -, hordas de turistas armados com celulares hipermodernos, crianças e pais entediados no vagão do “Tchezinho”, vendedores de raspadinhas berrando promoções e dezenas de ciclistas, consigo convencer minha namorada a um passeio menos romântico em Porto Alegre: conhecer Luis Fernando Verissimo.

“É muito longe daqui! E não é meio impossível? Aquela sua conhecida não disse que ele é um chato de galochas e que até negou autógrafo pra ela?”

Aquela conhecida: ex-colega de classe, louca varrida, fã de Munhoz & Mariano, Luan Santana & Michel Teló e toda a corja de berros sertânicos - eu também negaria um autógrafo pra ela.

“Disse, disse. Mas era numa feira literária”, vou lembrando, “dessas com filas gigantescas, cheia de crianças e pré-adolescentes babões, e ela, que nem livro tinha, parece que se aproximou e exigiu dedicatória numa agenda qualquer, pô! Se cada leitor chegas- se com agendas, imagina o caos que seria?!”, digo, já fazendo sinal para o ônibus parar, e empurrando minha namorada porta adentro.

Há quatro anos, Luis Fernando Verissimo passou duas semanas na UTI de um hospital e deu um baita susto em seus leitores. Quase morreu, vítima de uma infecção nos rins que ameaçava ser fatal, e, durante um tempo, manteve-se recluso dos eventos literários. Com a melhora em 2013, foi retomando a antiga rotina. Rumo aos 80 anos, comemorados no dia 26 de setembro deste ano, ele segue publicando crônicas irônicas e inteligentes nos jornais Zero Hora,O Estado de S. Paulo e O Globo. Sua obra mais recente, As mentiras que as mulheres contam saiu no ano passado e pode ser lida como uma continuação do best-seller As mentiras que os homens contam (2000), que vendeu cerca de 500 mil exemplares.

Se tudo der errado e Luis Fernando Verissimo não nos receber, recusando uma dedicatória na minha edição de Outras do analista de Bagé (1982), pelo menos estaremos na frente da casa onde morou e morreu Erico Verissimo, vou dizendo à namorada. E agora é ela quem me puxa pelo braço, porque segundo o aplicativo do celular é exatamente aqui o ponto onde temos de descer, a duas quadras de distância do destino literário.

Soldados e pardais

O bairro de Luis Fernando Verissimo parece uma zona de guerra. Soldados do exército, divididos em duplas, zanzam de um lado para o outro, batendo de porta em porta e conversando com moradores, num mutirão contra a dengue. “Podemos ir disfarçados de soldados...”, sugere minha namorada, um tanto ofegante com a subida da ladeira, “quem sabe assim ele não é obrigado a receber a gente?”

Vencida a subida, somem de cena os recrutas caçando mosquitos. Casas silenciosas. Antigas. Charmosas. Escancaro ouvidos no meio da calçada, na tentativa de escutar algum solo de clarineta, mas tudo o que ouço são os improvisos jazzísticos de um casal de pardais, se engalfinhando numa árvore de esquina. E é daqui, debaixo dos pardais, que vejo, a poucos metros, a casa de Erico e Luis Fernando Verissimo.

O carro estacionado na garagem e a porta entreaberta indicam que há gente. Azulejos coloridos. Pequeno jardim à frente – epa, não foi bem aqui que Erico tirou aquela foto, sentadão, todo sorridente?

Uma voz serelepe e gentil atende o interfone. “Então vocês querem conhecer o Luis Fernando?”, pergunta, do outro lado da linha. “Exatamente. Somos seus leitores.” “Esperem um momento. Vou abrir para vocês.” Surpreendente. Menos impossível que o esperado. Minha namorada já saca da bolsa a edição a ser autografada - nada de agendas, evidentemente.

Gente finíssima, a senhora de cabelos grisalhos surge para abrir o portão. “Muito prazer! Sou a mulher do Luis Fernando. Vocês, então, vieram do Paraná?!”

Vestidinho cinza, olhos cheios de vida e pés descalços para sentir as verdades do mundo. Sessenta e poucos anos - não aparentam só vinte e nove?! “Entrem, entrem. Só me perdoem, viu? Que isso não é traje de receber visitas. Mas vamos entrando que já vou chamá-lo.”

Antessala. Sofás para pausas rápidas. Suporte para casacos. Corredor de paredes brancas. Um quarto. Cômodos escuros. Ar condicionado refrescando a alma. “Luis Fer-naaan-dooo!”, grita a mulher, carinhosamente, convocando o marido.

No final do corredor, que dá para uma grande sala com sofás confortáveis, mesa apinhada de livros e jornais, e paredes lotadas de pinturas de artistas gaúchos, Luis Fernando Veríssimo finalmente surge em cena. Um metro e sessenta e pouco. Camisa branca por baixo da calça bege enlaçada por cinta preta. Sapatos escuros. Roupa de quem está prestes a trabalhar. “Vamos nos sentar, por favor”, convida o autor, estendendo sorrisos.

Pergunta o meu nome e o de minha namorada. Ao ouvir o nome dela, Ariádiny, lembra que já o usou em uma de suas obras.

“Foi naquele romance...”

Olhos vagueiam lembranças nas paredes de telas e aquarelas.

“...aquele...”

Sobrancelhas envergadas em busca do título perdido.

“...‘Os Espiões’”, responde, orgulhoso da própria memória.

Caminho da crônica

“O que um jovem aspirante a escritor deve ler para poder escrever bem?”, pergunto. Luis Fernando vai respondendo com calma, fazendo algumas pausas entre seus selecionados da sagrada lista.

“Eu sugiro os cronistas... Fernando Sabino... Paulo Mendes Campos... Sérgio Porto... Rubem Braga... Todos eles. E depois, é só escrever. Não precisa saber como vai terminar a história... É só pensar no início e, em seguida, desenvolver a ideia... Eu mesmo nunca sei como vou terminar uma crônica ou um conto”, revela.

“E por que essa reclusão do público e dos eventos literários?”

“Um pouco dessa minha reclusão é porque, como você sabe, sou muito tímido... Esses eventos são muito difíceis pra mim. Mesmo assim, quando sou convidado para ser patrono de festa literária ou coisa do tipo, faço um esforço para ir.” “E o próximo livro, quando vem?” “Já está com a editora. Será uma compilação de crônicas já publicadas. Ainda não tem nenhum título definido”, adianta.

“Vô, vô, vô!”, grita uma menininha, de uns cinquenta centímetros, invadindo nossa conversa. “A gente já pode ver a experiência?”

Luis Fernando abre um sorriso carinhoso.

“Claro, já vamos ver. Será que deu tempo? Gelou tudinho?”

“Eu tava vendo ali e já deu sim, ó...”

O dedinho, firme, apontando o relógio de parede.

“...passaram trinta minutos, tá vendo? A gente pode abrir o freezer?”, indaga a menina, cheia de ansiedade.

“Só mais um segundinho e o vovô já vai ver a experiência com você, tá?”

“Tá bom. Brigada, vô!”

A menina sai em disparada pelo corredor. Não queremos atrapalhar a experiência em família do autor e de sua netinha.

“Gostaríamos que você assinasse nosso livro, pode ser?”

“É claro que sim.”

Iberê particular

Depois da dedicatória, com letra miúda, típica dos tímidos, ele se levanta, pergunta se gostei dos quadros.

“São fabulosos. Você tem um verdadeiro museu. Não pensa em abrir sua casa ao público?”

“Jamais.”

“Só falta um Iberê Camargo”, digo.

“Ah, vocês gostam do Iberê?”, devolve o autor.

“Iberê é nosso maior pintor. Maior que Portinari. Que Tarsila. Que todos eles juntos. Injustamente esquecido”, respondo.

“Querem ver o Iberê que tenho aqui em casa?”, ele pergunta.

Um Iberê para chamar de seu. Luis Fernando não se surpreende com nossa cara de espanto.

“Meu pai ganhou de presente dele.Vamos até lá, na outra sala, que vou mostrar para vocês.”

Eu e minha namorada nos damos as mãos. A passos lentos, vamos seguindo o escritor. No meio do corredor, esbarramos com Capitão Rodrigo, as Cobras, Ana Terra, Analista de Bagé, Quitéria Campolargo, Ed Mort, Barcelona, Velhinha de Taubaté, Erotildes e num punhado de homens mentirosos.

A ficha agora cai: um Iberê sem faixas no chão exigindo distância da pintura. Sem seguranças
uniformizados e entediados te rondando. Quatro palmos de largura e mais duas e pouco de altura? Vermelho. Preto. Cinza. Branco. Pinceladas em relevo exibindo os traços do nosso pintor mais genial, a poucos metros do nosso cronista vivo mais genial. Além de outros quadros, as paredes surgem cheias de livros e CD’s, misturando a história de pai e filho nas estantes. “Aqui ficam as traduções dos livros do meu pai”, comenta Luis Fernando, apontando a longa fileira de livros incompreensíveis. Puxo das estantes uma edição indecifrável, com hieróglifos orientais. “Essa é de O senhor embaixador", avisa.

Fecho O senhor embaixador e pergunto a Luis Fernando se ele sentiu orgulho da bela crítica que Wilson Martins publicou sobre O Popular, seu livro de estreia, no início dos anos setenta. “Como era mesmo essa crítica?”, ele pergunta.

“‘O Popular’  não é um livro importante, mas Luis Fernando Verissimo é, ou será, um escritor importante”, decretava, em tom profético. Destacando a qualidade do autor gaúcho, enquanto jornalista e literato, o severo Wilson Martins ainda rechaçava, nas páginas de O Estado de S. Paulo, quem o tomasse apenas por “simples humorista”, o que seria “não apenas injusto, mas indesculpável erro de julgamento”.

Recepção gentil

Luis Fernando abre outro sorriso, em meio aos CD’s de Mozart, Beethoven e outros compositores clássicos, ao lado de uma vitrola que não funciona mais. “Ah, sim. Eu me lembro bem desse texto... Essa crítica do Wilson Martins me fez muito bem, na época”, admite o autor.

A criança na cozinha volta a gritar pelo avô, curiosa pela tal experiência na geladeira. Eu e minha namorada aproveitamos para agradecer a recepção gentil e carinhosa. E, acompanhados pelo autor e sua neta, vamos deixando os cômodos silenciosos, abandonando Iberê Camargo, cruzando salas de livros e arte.

Na saída, a mulher de Luis Fernando conversa com um sujeito meio gorducho e uma quarentona. Explica aos convidados que viemos do Paraná e reclama do calor infernal que abafa Porto Alegre naquele sábado. Já estamos nos despedindo do autor e de sua família quando um forte estrondo, de um objeto que acerta o chão e se arrasta até a parede, interrompe bruscamente nossos últimos diálogos.

“Meu Deus, já é a segunda vez!”, assusta-se a quarentona.

“Aqui é sempre assim”, desabafa a esposa de Luis Fernando.

Rindo do susto, todos olhamos um tanto surpresos para o jornal que acaba de ser disparado pelo entregador anônimo.

“Outro dia me acertaram a cabeça, acredita?”, lembra a quarentona, pegando o jornal do chão.

“Já entendi tudo”, diz o gorducho, olhando para Luis Fernando. “Esse cara é um leitor que te detesta. E toda vez que passa por aqui, faz questão de arremessar o jornal com raiva e rancor, pensando: ‘Toma aí, seu escritor de merda!’”.

Todos caímos na risada. O episódio certamente renderia boa crônica e, quem sabe, até algum personagem secundário num romancete. Desconfio que era exatamente nisso que o autor pensava, contemplando, num riso silencioso, o susto e a indignação da família, a fuga do arremessador de notícias, o semblante embasbacado de seus dois leitores paranaenses e a ansiedade da neta pela misteriosa experiência no freezer. Mesmo sem sair de casa, Luis Fernando Verissimo tem todas as histórias e todos os personagens que precisa.

PUBLICADO NO CORREIO BRAZILIENSE (19/3/2016)

Strikes, rancor, musas e conselhos amorosos


Em Maringá, você conta nos dedos os prazeres da terceira idade: a cervejinha carérrima no Nara's Bar, as tardes de dama e dominó na praça da Pernambucanas, o bailão vespertino no Clube do Vovô e os jogos de malha na Vila Operária. Mas não só desses êxtases vivem os teus velhos. Exímios jogadores de bocha, possivelmente a mais entediante das modalidades esportivas - superando o golfe e o rugby -, os velhos maringaenses também se regozijam com manhãs de boliche.

Em plena quarta-feira, às oito da manhã, risinhos e palminhas ecoam entre pinos derrubados na 9ª edição do Campeonato de Boliche das ATI's (Academia da Terceira Idade). Todas as pistas tomadas. Os mais preparados, de roupas leves. A cada jogada, tênis esportivos arranham solas antiderrapantes. Desconfiados do sistema de contagem eletrônica, alguns velhos fazem questão de registrar num papelzinho o resultado da pontuação. A cada strike, berros e comemorações exaltadas.

Única não-velha sentadinha com os bolicheiros, a menina de doze anos quase não se contém.

"Vim pra acompanhar minha vizinha. Será que vão me deixar jogar?", pergunta Micaela Spagnoli, torcendo mãozinhas e enroscando dedos, acompanhando pinos que descem e sobem - jamais para ela. Sabe, você, o que é passar sede diante do mar?

"Nem um pouquinho?", insiste, preocupada.

Difícil responder. Olhe em volta. A dedicação. A curvatura em cada jogada - não é perigoso depois dos setenta e pouco? Velhos levam a sério o tal campeonato.

"Isso aqui é muito melhor que malha e bocha!", garante um setentão.

Chapéu branco, camiseta regata, peito em mil batimentos cardíacos.

"Esses esportes antigos dão muito trabalho. Tem que ir de um lado pro outro, depois ajeitar as coisas, fica cansativo. Aqui é tudo diferente. Posso fazer muitos pontos..."

Dedão apontando o papelzinho rasurado de jogadas - pontuação: 78.

"...e ficar sentadão, ó, tranquilinho. Que os pinos sobem sozinhos."

Um olho fala contigo, o outro amaldiçoa as jogadas do adversário.

Bendito Piauí

Fora da pista, jovens monitores prestam auxílio, cedem conselhos e estímulos aos derrotados.

Sou atraído por uma voz feminina. Sotaque exótico, com tons ainda mais graves e agudos.

"Vim dí Terésina, nu Píauí."

Como é bom mulher bem acentuada.

"Gostando de Maringá?"

"Adoréi, víu? Mas é túdu díferêntí."

"?"

"Nas festînhás, é tudu múndu convérsándu. I não dánçam cum ninguém!"

Ai, essas dançarinas de Teresina. Olhos castanhos, boquinha vermelha, um metro e sessenta de altura.

"Na minha cidádí, a génti dánça mésmu: Wésléy Safádão, Falamansá e Aviões do Fôrró."

Já pensou? Você, cara, dançando essas coisas? Melhor: nem pense.

"E os homens maringaenses?"

Risão descontrolado. O dedinho de lá para cá indicando jamais. Não saberás. Insisto.

Grandes lábios escancaram sorrisos sacanas.

"Tu tém cértêêêza?!"

Pensando melhor...

"Tu já sábe a réspóóósta, né?"

Lula lá

Deixo a moçoila do forró, saio coletando resmungos rancorosos.

"Aquele Lula é um safado."

"Que nada. Safado é você. Lula mudou nosso País..."

"Mudou mesmo: pra pior. Olha essa crise."

"...e ainda vai salvar a gente. Não é José?"

"Sei não."

"Ele, Cunha, Dilma: tudo ladrão. Pensa que não roubaram? Cadeia neles. Moral neles. Moro neles."

"Mesmo votando no Lula, acho que ele deve ser investigado pelo Moro. Isso eu concordo. E você, José?"

Semblante sem mínimas reações.

"Meu Deus, José, não tem opinião?"
"Sei não. Ó, Benedito, sua vez de jogar."

A vida segue no meio da crise. Sento num canto. Hora de acompanhar o aquecimento de velhos aglomerados numa sala envidraçada. Alguém chega com um bambolê azul e anuncia o próximo exercício.

"Tem que pegar e passar o corpo inteiro por dentro dele, tão vendo?", explica uma moçoila, enfiando-se e contorcendo-se diante do círculo de plástico.

Séria e sisuda, a velha encara duas vezes o brinquedo em mãos. Não é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha? E se travar tudo?

Estimulada pelos colegas não menos jovens, ela respira fundo, cochicha qualquer coisa - benção ou palavrão? - e começa a suar frio. Em dez segundos, o fim da aventura. As palmas febris do coração encorajam o velho ao lado, que, igualmente apavorado, também recebe o bambolê e parece ter certeza de seu fim: entrar ali e jamais sair.

Musa do bambolê


"Aquele outro senhor é muito competitivo", cochicha uma voz levemente apimentada.

Loirinha, vinte e dois aninhos, tênis esportivo de cores berrantes. Você resistiria? Rápido e ligeiro, eu me levanto. É duro, cara, testemunhar tantas musas maringaenses. Em pé, vou salivando cada detalhe, um mais delicioso que o outro. Quer ver, nobre voyeur?

Nome: Débora Padilha.
Calça: cinza e coladíssima.
Cabelo: preso num rabo de cavalo.
Altura: 1,70 m.
Olhos: melancólicos.
Pescoços: à Modigliani.
Ombros: altos.
Pintinhas: não.
Coxas: elegantes.
Risos: autênticos.
Joelhos: adocicados.
Braços: branquíssimos.
Pés: no chão.
Unhas: cordiais.
Lábios: tenros.
Perfume: mescla de azaleias, lírios, begônias.
Apelido: Dedé.
Piercing: no nariz.
Hobby: vôlei.
Tatuagem: frase negra no pulso direito.
O quê: "Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei".
Fonte: Salmo 91, Bíblia.

"Aqui, a gente fica com eles durante o tempo ocioso", explica Débora

"Nessa idade, faz bem ser competitivo?", questiono.

Lá no meio, mais um velho é desafiado - o bambolê tremelicando pavor ou espasmos musculares?

"Qualquer coisa que estimule a prática de exercícios já é ótimo."

E mais não dá para arrancar da nossa loirinha. Que ela, ligeira, corre em direção ao bambolê, é hora de guardá-lo, ajeitar uma cadeira ali e aqui e iniciar nova atividade, desencarrilhando suspense e interrogações - nessa altura da vida, todo aquecimento é um esporte radical.

Exercícios casamenteiros

Sentadona à mesa, ao lado de um japonês quieto e calado, a senhora de 69 anos ignora o aquecimento. Quer mesmo é se jogar na pista.

"Não vim pra perder", anuncia, toda serepele.

Chego distribuindo gentilezas. Milagre do Santíssimo? Miragem destes olhos traiçoeiros? Nunca aparentando quase sete décadas de vida.

A velha se delicia com a risadinha mais graciosa.

"Pensa que é fácil manter essa forma?"

Braços, cotovelos, canelas e pescoço enrugando passados.

"Três vezes por semana, faço exercícios no salão da igreja. E sem falar na hidroginástica. Isso me mantém viva. Meus seis irmãos, que nunca praticaram esporte nem caminhada, já morreram tudo."

"Solteiríssima?", vou sondando.

"Que nada. Casada há 52 anos."

O velho japonês, agora, escancara ouvidos à conversa.

"Qual receita do casamento perfeito?", questiono.

"Muita paciência. Porque vou te contar, viu? Não é fácil viver uma vida assim", aconselha.

Quase em cochichos, o japonês resolve polemizar o diálogo.

"Sabe qual é o verdadeiro segredo do casamento?"

A risadinha escapando no canto da boquinha carcomida pelo tempo - dele e dela.

"O segredo do casamento é ser pobre."

Aplaudindo a resposta do japonês, mãos eufóricas e rosto coradinho, a velha vai ao delírio - a mesma empolgação de assistir, na primeira fileira, os mágicos e malabaristas do circo Tihany.

"Vê o meu caso: sou pobre, trabalhei a vida inteira e não tive tempo de ficar brigando."

"Comigo, minha nossa, a mesma coisa!"

"Com rico é diferente: com tempo livre, termina o casamento e junta com outra, sempre mais nova."

"Pra eles, quanto mais nova melhor."

"Por isso, tô casado há 54 anos."

"Ainda há romantismo?", pergunto ao japonês.

A velha escancara risadona estridente - desespero das noites de horror? O japonês lança um olhar distante, cansado e vencido.

"Olha, tá bem mais ou menos."

"?"

"Pra falar a verdade, não tem mais romantismo, não."

A velha completa os lamentos conformados do último romântico.

"Nessa nossa idade, é mais a companhia que importa, né?"

"Exato: um cuidando do outro..."

"Sei bem como é."

"...até o fim da vida."

Lições preciosas

"Como eu pego nas bolas?", questiona-me uma senhora oitentona, cutucando minhas costas com o indicador.

Reflito um pouco em como ajudá-la. Levanto o indicador, o dedo médio e o pai de todos. E digo que é para colocar nos buracos.

"E cabem?"

"Quase inteiros."

Olhos curiosos desejando novas lições: nunca é tarde para aprender.

"Só enfiar tudo?"

"Sem medo."

"E não machuca?"

"Dor e prazer muitas vezes se completam..."

Risinhos descontrolados e frenéticos.

"...mas não é o caso."

Bochechas corando interrogações, pelinhos morenos eriçados no braço direito.

"Alguma outra dica?"

"Concentre-se nas setas."

"Que setas?"

"No chão, ali, enfileiradas."

"Ah, sim. Agora tô vendo."

"Mire no centro: você está feita."

"E pode com qualquer mão?"

"Prefira a mais firme."

"Olhos fechados ou bem abertos?"

"Bem abertos: jamais perder o mínimo detalhe."

"Do jeito que eu gosto."

E lá vai ela. Na pista, lá longe, alegrinha, desajeitada, inexperiente de quase tudo, não parece sessenta e cinco anos mais nova? Com cuidado, segura a bola de boliche com as duas mãos. Concentrada na própria jogada, posiciona-se diante das setas.

A longa espera da bola espancando a pista causa aflição nos adversários – velhos lançando maldições em silêncio, torcendo pelo pior.

As canaletas eretas, alívio das amadoras, são apenas decorativas para a minha aluna.

Nove pinos derrubados de uma única vez, numa jogada certeira e sem desvios: não é para qualquer um.

Ela comemora, nós comemoramos. Tivesse champagne, ostras, vinho francês, ali nos serviríamos. Justo e merecido. Velhos batem palmas e distribuem parabéns à minha estreante - por dentro, disparam mais maldições e torcem pelo pior.

PUBLICADO NO DIÁRIO (20/3/2016)

terça-feira, 8 de março de 2016

Rumo ao sul, ao sol... 'Recuerdos' das férias

Escrever a redação das férias era tarefa desesperadora para todos nós, alunos do Colégio Santo Inácio. Vejo essas mochilas carregando alunos, no retorno às aulas, e tenho piedade deles todos.

Quantas inúmeras vezes você não saía da sala para ir ao banheiro, mesmo sem vontade de esvaziar a bexiga, na tentativa de esbarrar em histórias entre pias e privadas do colégio? Como passar a limpo o que ninguém em sala, nem alunos nem professora, sabe exatamente o que você fez?

Clamando a Deus e todos os santos, no bendito colégio católico, fui atendido, certa vez, por um sussurro anônimo, soturno e sereno, porém um bocado aterrorizante – é a mesma voz, noto agora, depois de tantos anos, que ecoa na versão dublada de "Marcelino Pão e Vinho": "Gaioto, lembre-se disso: no início, era o verbo".

Foi aí, com esse aviso do além, possivelmente Dele, do tradutor da Herbert Richers, que me dei conta do verbo.

Na escola, obrigado a preencher de 27 a 35 linhas com histórias sobre minhas férias entediantes em Maringá, aprendi a ser um mentiroso.

Não desses mentirosos que derrubam senadores ou desmoronam casamentos de longa data. Um mentiroso mais leve, suave, lírico.

Nas minhas redações, eu namorava todas as garotas do edifício Serra da Cantareira – inclusive as dulcíssimas irmãs de vinte e poucos anos, do décimo primeiro andar.

Pescava tilápias agigantadas no Pesqueiro do Pacu.

Encarava jacarés, onças e rinocerontes no Parque do Ingá.

À noite, pegava baladas na Kalahari, sempre no setor VIP, evidentemente, sendo muitíssimo bem-sucedido com as musas da alta sociedade.

Essas e outras mentiras costumavam causar inveja e rancor nos outros alunos – e foi aí que eu descobri, logo cedo, que, ao escrever, você deve estar sempre disposto a expandir sua lista de inimigos.

Se não for para criar inimigos, então é melhor nem escrever: há outras artes, como o canto gregoriano ou o balé clássico, mais indicados para quem quer engatar novas amizades. Mesmo assim, como ninguém tinha férias tão rocambolescas como as minhas – nem as mocinhas de vozes estridentes que abraçavam o Pateta na Disney –, a coisa ficava por isso mesmo. Eu, feliz à beça e de sorriso no rosto, redigindo minhas histórias amalucadas, e o resto dos alunos tristonhos e altamente depressivos, conscientes do quão entediante, tosca e mesquinha é a existência de um ser humano.

Se você é desses alunos - pelo que me parece, há escolas exigindo esse tipo de redação até dos coitados do Ensino Médio -, aqui vão cinco dicas certeiras:

1) Capriche nos detalhes: cores, nomes simples e compostos, perfumes e maus cheiros. Nenhuma verdade é mais real do que sua imaginação é capaz de inventar.

2) Esqueça essa bobagem de começo, meio, fim. Comece o fim pelo meio, termine pelo começo, faça do meio o teu abre: esquemas só servem para te chicotear o lombo na escravidão.

3) Não se preocupe com os tais bloqueios criativos: durante a escrita, use todos os possíveis adjetivos. Na primeira revisão, corte metade deles. Na segunda leitura, mais uns vinte por cento. Na terceira, extirpe os que sobraram. Seu texto está pronto.

4) Explore a nudez à vontade. Da mulher, não hesite as mínimas belezas, cada pecinha de roupa, se saltinho ou sapatinho, os tamanhos de cada detalhe do corpinho, com suas curvas, cores, harmonias e relevos próprios. Do homem, bem, não sei o que dizer.

5) Ao detalhar suas férias, não espere glória nem aplausos. Allan Poe, Kafka e Lima Barreto nunca foram reconhecidos em vida. Se o reconhecimento não vier, decepe uma das orelhas.

Caminhante
Quando viajam, sujeitos entediados lutam para não morrer de tédio. Atazanadas de fúria uterina, moçoilas saciam todos seus sonhos picantes – impossível detalhá-los por aqui.
Endinheirados ostentam camarotes, restaurantes carérrimos e lanchas com DJ's e modelos de passarela.
Você, quando viaja, só quer um canto sossegado, calçadas para flanar e algumas garrafas de vinho – mesmo nas mais longas viagens, ninguém escapa de si mesmo.

Uruguai
Em Montevidéu, morro de amor por Pocitos, nossa Copacabana dos anos cinquenta. Veja os prédios: todos pequenos, limpíssimos e acinzentados decorando a orla. Num desses apartamentos, de frente para o Rio da Prata, certamente empunhando uma garrafa de uísque, Vinicius de Moraes compôs "A Felicidade". Caminhando pela orla, impossível não cantarolar os versos do Poetinha. Nada daqueles prediões depredados da Copacabana de hoje. Onde os viciados em sexo? Onde os tantos traficantes, drogados, trombadinhas e meretrizes sexagenárias de olhão esbugalhado? Em Montevidéu, a bossa nova ainda faz sentido. Tristeza não tem fim; Copacabana, sim.

Ser portenho
Loiras, muitas loiras. Loiras lisas, cacheadas, naturais, oxigenadas, loiras cheias de luzes. Ombros à mostra, grandes lábios rosados, lábios pequeninos e vermelhíssimos, bracinhos nus com ou sem
tatuagem. Loiras de chapéu, de vestidinho florido, shortinhos ofuscantes, calças coladinhas.
Gozando merecidas férias, em meio a tantas loiras na Avenida 9 de Julho, Buenos Aires não é o melhor museu do mundo?

Melhor das piores
Se você quer morrer de tédio, gaste uma tarde em Colônia do Sacramento.
De que serve seu famoso pôr-do-sol se não para deixar ainda mais melancólica aquela pocilga de cidade? Ruínas, velharias, ruas em pé-de-moleque, casarões empedernidos, restaurantes ruins num calor dos diabos. Turistas ensopados de suor lamentam o azar – qual maldito te aconselhou passar duas noites aqui?
Sem nada para fazer, você planeja os mínimos detalhes da tua vingança. De volta da viagem – danem-se os tais mandamentos sagrados! –, você, sim, sacaneará o próximo. Sabatinado pelo vizinho, pelo colega de departamento e até pelo leitor, você aconselhará não duas, mas quatro, cinco ou seis noites em Colônia do Sacramento, a melhor cidade da América do Sul.

Ah! Buenos Aires!
Poucos minutos antes do Stravinski ao ar livre, no Centro de Buenos Aires, pais vão chegando com suas crianças babonas de cinco e seis anos de idade. Atiçadas, correm de lá para cá. Crônica do desastre anunciado? Lá, não. Quando os músicos surgem no palco, elas sossegam. Crianças cordiais e educadas nem lembram as propagandas ambulantes de vasectomia que esperneiam, em Maringá, em qualquer concerto. Quer ser pai? Vá pra Argentina.

Uma vantagem
Único alívio em Colonia do Sacramento? Lá, pelo menos, você não escuta os berros estridentes das 300 duplas sertânicas que infestam tua maldita Maringá.

Oh! As gaúchas!
Em Porto Alegre, onde as gaúchinhas de olhos verdíssimos? Azarado que sou, caço à toa e não navego musa alguma. Gorduchas de varizes azulonas, velhotas leprosas, ciganas de dentes macilentos, essas, sim, te sorriem a caminho do museu do Iberê Camargo, oferecendo mil e uma noites de êxtase, em promessas que fariam corar o danado Bocage.

No coins
Na porta central, prestes a entrar numa igreja chatíssima de Porto Alegre, a mão tremelicante estendida na tua direção é do aleijado clamando dinheiro. Esperto, na saída, você escolhe uma das portas laterais. Lá, um bêbado sessentão e uma aidética cinquentona também exigem moedinhas. Dinheiro não dou nem tenho peso na consciência – benefício de zanzar somente com cartão de crédito.

Querem meu dinheiro!
Roupas rasgadas, voz chorosa, fedendo a peixe e cigarro paraguaio.
"Alguém me ajuda..."
Rosto encardido dos sessenta anos de cachaça.
"...pelo amor de Deus..."
Mão tremelicando saudades do próximo gole.
"...com dez reais?"
Mais um deles.
Em todo canto de Porto Alegre, um velho cobiça teu dinheiro.
No Mercado Municipal. Na Ladeira. Na Casa de Cultura Mario Quintana. No Centro Cultural Erico
Verissimo. Pensa, você, que o inferno é Maringá?

Ô, tchê!
Você mal sai do hotel, o gaúcho te aborda na calçada.
Carros, motos, alguém desafinando o teclado na esquina. Olhar te pedindo – o quê? Suadão, camisa cavada.
Ai, não, mais um?!
Distraído com a buzinada de algum carro cinza, você nem escuta a pergunta do desconhecido e já dispara resposta pronta:
"Não tenho dinheiro!"
Confuso e surpreso, o gaúcho te devolve meio constrangido.
"Ô, tchê, só tô perguntando as horas!"
Criminalidade
Nas areias de Pocitos, gritos de "Deus nos acuda!", "minha nossa!" e "ai, meu Deus!" compõem a trilha da correria no calçadão.
"Pega! Pega!"
Ladrão?
"Pega! Pega!"
Tarado?
"Pega! Pega!"
Até aqui?
Assutados, banhistas desembestam de um lado para o outro. Forte dispara o coração.
O magrelo branquelo vira refém de um grupo e é surrado no meio da areia por dezessete sujeitos.
Com a sova bem-sucedida, abandonam o corpo e se misturam aos turistas no calçadão, apressando passos da polícia. Fugir das rodas de pancadaria nas areias de Pocitos libera mais endorfinas que duas horas de pacíficas caminhadas.

Cultura
A brasileira magrela, de ossos minúsculos e rosto chupadão, contempla os débeis traços do "Abaporu". Exposto no museu argentino, o maior quadrinho da pobre Tarsila.
"Gente, que vergonha..."
Voz grave, mãos masculinazadas, vasta cabeleira nas axilas.
"...nossa maior obra-prima..."
Da blusinha regata, os tantos pelos não te sorriem?
"...tão longe do nosso povo, e não nas paredes do Masp de São Paulo."
Pergunto nome, idade e profissão da moça.
"Micaele, 25 anos, estudante."
"Então, Micaele, o Masp, por outro lado, tem seis Modiglianis, e os argentinos só têm dois."
Caçando de perto, onde os resquícios da beleza feminina?
"Pouco importa a pintura europeia..."
"!"
"...o que vale a pena é valorizar o que é nosso!"
Sabe ela, realmente, o que é um Modigliani?
Não dá tempo para perguntar. E a moça desembesta a bater pernas entre outros quadros – todos, evidentemente, melhores que a Tarsilinha.
Na parede argentina, você encara bem, novamente, o pobre "Abaporu": primitivo, infantiloide, cru, malfeito, amador, rudimentar. Melhor ficar aqui mesmo.

Por último, o sol!
Em Porto Alegre, a gorducha loirona contempla o sol se espreguiçando às margens do Rio Guaíba: "Tchê, é o pôr-do-sol mais lindo do mundo!", garante, deslumbrada.
Dois dias depois, na chatíssima Colônia do Sacramento, duas gordas morenonas se espremem diante do celular, na tentativa do selfie perfeito, diante do Rio da Prata – mais fácil enquadrar treze luas juntas que aquelas duas gorduchas: "Esse é o pôr-do-sol mais lindo do mundo!", garantem, deslumbradas.
Em qualquer lugar do mundo, o sol deita catarses de gordas.

Publicado no Diário (6/3/2016)